Indígenas reativam ”fábrica de água” andina
Por racismoambiental,
Água vale ouro para as comunidades andinas no Equador. A escassez nos vilarejos ao pé da cordilheira reduz a colheita, emagrece o gado e provoca o êxodo rural. Pouca água limita a vida. Mas há alguns anos as comunidades indígenas começaram a aprender como frear o processo aproveitando cada gota disponível. Trata-se de uma experiência insólita de adaptação à mudança climática. A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 14-02-2011.
A chave da equação está no manejo de um ecossistema único que existe nas montanhas andinas da Venezuela, Colômbia, Equador e Peru, em uma área da Costa Rica e em partes da África e da Ásia. O páramo, como é chamado, lembra um manto de musgo em um charco. Não há nada parecido no Brasil. A vegetação é rala e nasce sobre terreno pedregoso, aparece em lugares altos e onde faz muito frio. Nos arredores do Cayambe, um vulcão adormecido a 60 quilômetros ao norte de Quito, o páramo surge nas encostas entre 3 mil e 4 mil metros. Nas rochas crescem pequenas estalactites, indicando que ali há água. À primeira vista, não se dá nada por ele, mas é miopia: o páramo é uma ‘fábrica’ de água.
Funciona como uma esponja. É um ecossistema úmido que aparece em um contexto de chuvas frequentes e vegetação resistente, que armazena água e a distribui para lugares mais baixos. Chove, a água infiltra na terra, acumula e forma pequenos canais abaixo. A água é usada na irrigação das lavouras e para produzir eletricidade. Mas se a área estiver degradada, a chuva provoca erosão e se perde nas encostas.
Água é insumo disputado. As organizações sociais dizem que mais de 67% da água no Equador está concentrada em 1% a 2% dos produtores. No caminho para o pico nevado, o terceiro mais alto do país e cortado pela linha do Equador na face sul, há dezenas de grandes tendas brancas espalhadas. São as famosas estufas de flores. O setor emprega cerca de 100 mil pessoas no país e responde por 2% do Produto Interno Bruto de US$ 57,3 bilhões. Mas existe um custo ambiental na atividade e os pequenos reclamam que a distribuição de água na região é desigual. O consumo ocorre em larga escala nas fazendas de flores e o uso de agrotóxicos pode contaminar os riachos também utilizados nos pequenos cultivos de batata, milho, cebola, frutas e plantas medicinais. Mas o conflito não era apenas com os grandes. “Os companheiros que viviam acima colocavam um dique e não deixavam nada passar para quem vivia abaixo” diz Carlos Farinango, dirigente local. A guerra pela água já começou no Equador.
A moldura desse lugar é a bela cordilheira dos Andes, mas quem vive aqui aponta as montanhas com preocupação. No Equador, entre 1956 e 2006, as geleiras perderam 40% de sua superfície. Se o aquecimento for de 1°C, todos os pequenos glaciares do Equador irão desaparecer em uma geração, diz Bolívar Cáceres, um dos principais glaciologistas do país. “A primeira coisa que a comunidade sente quando percebe o derretimento das geleiras é que não há mais água como antes”, conta.
“Esse processo de derretimento é natural, mas é algo que o aquecimento global acelerou”, explica. A montanha de Cayambe tinha uma enorme geleira até 30 anos atrás. Em uma geração, perdeu 40% de sua massa. O Equador praticamente perdeu um terço de seu gelo.
As geleiras tropicais são as que realmente estão derretendo, esclarece o glaciologista brasileiro Jefferson Cardia Simões, coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, da UFRGS. “Estão diminuindo de tamanho rapidamente, algumas tendem a desaparecer, mas isso já ocorreu no passado. O que interessa é a rapidez do processo.” Não é só o aumento da temperatura que atinge as geleiras. Há outros parâmetros, como a quantidade de vento, a influenciar o derretimento. Os “nevados tropicais” que ficam a menos de 5 mil metros de altura são os que mais têm problemas. As geleiras, evidentemente, se relacionam com o ecossistema do páramo. Cáceres acredita que, no Equador, entre 10 mil a 20 mil pessoas dependem desses imensos rios de gelo para tocar sua vida.
Mas nem sempre os camponeses equatorianos entenderam que o páramo era a salvação da lavoura. Há alguns anos, como efeito da mudança climática e do gerenciamento ruim dos recursos naturais, as zonas mais baixas das encostas estavam secas, tinham pouca água e muita disputa com as fazendas de gado e flores localizadas no pé da cordilheira. Isso obrigava os pequenos produtores a levarem suas vacas onde o pasto era mais verde, montanha acima, nos páramos, deteriorando justamente a fonte de água local. Para piorar, costumavam colocar fogo acreditando que poderiam revigorar o verde. A vegetação foi sumindo e a aridez piorando. A chuva provocava erosão na montanha sem cobertura vegetal. As famílias camponesas dependiam cada vez mais da chuva e plantavam só batata e cevada, cultivos de baixo rendimento.
“Quando começamos a trabalhar aqui, havia uma pobreza vinculada à falta de água. A maioria das comunidades camponesas e indígenas quase não tinha água”, lembra Iván Cisneros, secretário-executivo do Instituto de Ecología y Desarrollo de las Comunidades Andinas (IEDECA), uma ONG que trabalha na região estimulando melhores técnicas de uso no campo. O trabalho inicial dos agrônomos foi tornar os cultivos mais eficientes. “Até o dia em que uma liderança local nos disse: ‘Querem ajudar? Tragam água para cá.”
Em 1985, as comunidades da região do Cayambe começaram a se organizar. O primeiro passo foi limpar os canais e acertar que a água, mesmo pouca, seria repartida entre todos que trabalhassem no projeto. Foram 1.200 pessoas limpando canais e melhorando a rede de irrigação. No final, 18 canais estavam reformados, quase 100 km de extensão. “Começamos a pensar em cuidar das fontes hídricas, em melhorar solos e sementes, mas principalmente em organizar o manejo da água” diz Humberto Cholango, dirigente local. “Entendemos que os páramos tinham um papel fundamental.”
Os 18 sistemas de água abastecem 3.500 famílias de pequenos produtores que vivem nas encostas do vulcão extinto e que estão agrupadas em 48 organizações. Jeronimo Lanchiba, morador da comunidade Las Moras, lembra do tempo em que o canal próximo tinha vazão de 80 litros por segundo e agora já alcança 220. “Estávamos avançando com a fronteira agrícola e com os rebanhos sobre os páramos. O resultado é que toda a área estava secando.” A partir de 1995, eles deixaram de ocupar a área com gado e plantações. “Ele é o nosso futuro. Somos totalmente conscientes de que dependemos do páramo para viver”, prossegue Lanchiba. “Se não cuidarmos dele, isso vai virar um deserto.”
No ecossistema há setores com funções diversas. Nas áreas mais pantanosas, a água se acumula e a umidade é mantida. Em outras, há vestígios de bosques andinos. Outras são áreas de pasto e havia ainda as áreas degradadas. Na proposta de manejo considerou-se trazer o gado para as áreas mais baixas, ao contrário de mantê-lo acima – agora o rebanho sobe em número limitado de cabeças por família. Também começaram com técnicas para melhorar rebanho e produtividade. A prática de colocar fogo foi combatida, áreas foram regeneradas com espécies locais. “Os resultados não são grandiosos, mas lentos e acumulativos”, diz Cisneros. “Aos poucos o rebanho e a produção de leite foram melhorando, os cultivos foram diversificando e aumentando a vazão de água dos canais.”
O Estado, reclamam as lideranças locais, anda distante do processo. “Durante muito tempo o Estado abandonou o campo. Depois, fizeram a infraestrutura dos canais, mas com manejo pouco adequado” conta a socióloga Mayra Garzón, responsável pelo programa de vida sustentável da ONG Intermon-Oxfam. “A água é elemento dinamizador da ação social, uma luta ao redor da qual os movimentos sociais se articularam.”
Para eles foi um trunfo ter definido, na Constituição de 2008, que a água é direito humano “fundamental e irrenunciável”. Abriu-se a discussão sobre se um direito humano pode ser privatizado. A demanda dos movimentos sociais é pela revisão das concessões. “A concentração de água no Equador é muito maior que a de terra, que já é alta”, diz Mayra.
Uma lei sobre recursos hídricos devia ter sido votada pela Assembleia Nacional em março. Mas os pontos de conflito fizeram com que fosse parar no limbo onde está até hoje. Um ponto de divergência dos movimentos indígenas e camponeses é sobre quem deve ser a Autoridade Única da Água. O governo entende que essa figura deve ser ocupada pelo Executivo, pelo presidente da República. Os outros querem uma gestão mais participativa. Em outros tópicos, a oposição é com o agronegócio. “Com a mudança climática temos que ter um mecanismo de governança da água muito mais sofisticado”, reconhece Maria Fernanda Espinoza, ministra do Patrimônio Natural.
A experiência desenvolvida pelas famílias mostra a importância dos esforços de adaptação à mudança do clima, pontua Antonio Hill, especialista em mudança climática da Oxfam. “A comunidade andina vem construindo uma maneira muito eficiente de aproveitar cada gota de água disponível, tanto individualmente como por unidade de produção”, avalia. Em sua opinião, contudo, estes esforços não serão suficientes no longo prazo. “A menos que os governos estabeleçam limites de emissão de gases-estufa, os ganhos conquistados a duras penas pelas pessoas do Cayambe e em outras partes do mundo, não serão suficientes para conter catástrofes”, acredita.
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