terça-feira, 23 de outubro de 2012

ÍNDIOS REIVINDICAM ANTIGO MUSEU DO ÍNDIO NO RIO DE JANEIRO PARA CRIAR A PRIMEIRA UNIVERSIDADE INDÍGENA DO BRASIL


ÍNDIOS REIVINDICAM ANTIGO MUSEU DO ÍNDIO NO RIO DE JANEIRO PARA CRIAR A PRIMEIRA UNIVERSIDADE INDÍGENA DO BRASIL




Afonso Apurinã, que está desde o início da ocupação, com o estádio Maracanã ao fundo. Foto: Renan Oliveira.
O antigo Museu do Índio, que fica no entorno do Maracanã, estádio de futebol carioca mais conhecido do Brasil, foi cercado pelas obras de reforma da arena para a Copa de 2014 no dia 29 de outubro de 2010. O espaço está ocupado desde o dia 20 de outubro de 2006 por diversas etnias indígenas, que reivindicam o imóvel para a construção da primeira Universidade Indígena do Brasil administrada por índios, cujo projeto também prevê um centro de referência para os nativos que chegam à cidade, um pólo de produção e difusão cultural ameríndia e um museu.
O casarão tem um valor simbólico para os índios por conta de sua história. Seu primeiro proprietário foi o Duque de Saxe, que em 18 de julho de 1865 doou o espaço à União para transformá-lo num Centro de Pesquisa sobre a cultura indígena, onde abrigou a Escola Nacional de Agricultura, atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na baixada fluminense. Décadas depois o prédio virou a sede do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado pelo Marechal Cândido Rondon em 1910, que estabeleceu as bases da política indigenista republicana. O SPI funcionou no Rio até 1962, quando foi transferido para Brasília, e no golpe de 64, tendo como diretor o grande Noel Nutels, os militares tomaram conta da instituição abandonando a obra de Rondon. Com a pressão interna e internacional, resolveram extinguir o SPI e criar a Fundação Nacional do Índio (Funai), em novembro de 1967.
No dia 19 de abril de 1953, mesmo dia em que Darcy Ribeiro instituiu o Dia do Índio, foi inaugurado um Museu do Índio no local. O Museu do Índio ficou no prédio do Maracanã até 1977, quando foi transferido para o prédio que servia ao Instituo Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), em Botafogo, na zona sul carioca, onde também funciona hoje a Funai no Rio de Janeiro. Fora de funcionamento, a União passou a titularidade do terreno para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em setembro de 1984. Dois anos depois o Ministério da Agricultura se responsabilizou pelo prédio, que apesar de centenário não é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), nem pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Se o prédio atualmente é todo deteriorado e pichado por fora, por dentro é só o esqueleto.
Existem atualmente cerca de 20 pessoas morando no local, originárias de etnias de diversas regiões do país: Guajajara, Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó e Potiguara são algumas delas. Como o prédio está em ruínas, os indígenas construíram suas casas do lado de fora com barro. Os índios dão aulas em colégios, fazem apresentações em universidades e vendem seus artesanatos nas ruas. Isso graças à lei 11.645, que obriga às instituições de ensino a chamá-los para apresentarem sua cultura: “a gente vê que os livros didáticos não contam a verdadeira história do índio, é totalmente diferente”, critica Guarapirá Pataxó, liderança vinda da Bahia que está desde o início na ocupação. Ele trata da parte cultural, e afirma que os índios não têm apoio financeiro de ninguém, nem da Funai, e quase não recebem doações.
Ocupação do Museu do Índio
Ocupação "Aldeia Maracanã" no terreno do antigo Museu do Índio, edifício ao fundo da imagem. Foto: Renan Oliveira.
Como os índios não têm nada legalizado, a ocupação, batizada de “Aldeia Maracanã”, funciona como uma frente de resistência, que se reveza. Geralmente a pessoa fica durante um mês e volta para a sua aldeia, a fim de repor as energias para ficar no local, pois é cansativo devido às condições precárias e dificuldades na metrópole. Eles também já tiveram problemas com roubos, viciados em drogas e a presença de mendigos que entram no prédio abandonado, mas a resistência se mantém firme.
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio do advogado Arão da Providência, entrou com diversos processos administrativos para a reintegração do imóvel. O advogado explica que desde 2006 essas medidas visam à regularização fundiária para interesse social em imóveis da União, conforme é previsto na lei 11.418 da Constituição Federal. Já foram acionados o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e Câmara dos Vereadores, além de um pedido de transferência do imóvel diretamente à Conab, do Ministério da Agricultura, proprietária do imóvel.
“Esse pedido foi feito em 2006 logo que nós reassumimos, e o delegado do Ministério da Agricultura aqui, o doutor Pedro Cabral, fez essa sessão e encaminhou o procedimento a Brasília e até hoje não saiu uma definição. São muitos interesses ali, é um imóvel valorizado, tem um interesse das empreiteiras que inicialmente já estavam dando como certo pegá-lo. Elas queriam fazer um grande shopping, uma coisa futurística que não tinha nada a ver com cultura e essas populações”, disse.
O Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, afirmou que ainda não existe nenhum projeto definido para o local e há um diálogo com a secretária estadual de Turismo, Esporte e Lazer, Márcia Lins.
“Falaremos no momento oportuno qual será a destinação do imóvel, o estado ainda vai nos chamar para conversar. A memória dos índios será preservada, talvez com uma loja de artesanato para eles venderem seus materiais. Não me lembro de nenhum documento entregue pelos índios que ocuparam o museu para a cessão de titularidade do imóvel, e nunca fui informado de que eles têm uma proposta de criar uma universidade indígena no local”, afirmou.
A secretária de Turismo, Esporte e Lazer do Estado do Rio de Janeiro, Márcia Lins, informou, por meio da assessoria de imprensa, que estão ocorrendo reuniões sobre a destinação do prédio mas ainda não há nenhum projeto definido nem data para sua divulgação.
Arão diz que já houve reuniões no gabinete do Ministro da Agricultura e eles se comprometeram a não tomar nenhuma iniciativa sem comunicá-los, mas desde novembro do ano passado, na última reunião, nada lhes foi informado. Apenas foi indicado que o imóvel deve ser revitalizado até a realização da Copa do Mundo no Rio, disse. O laboratório da Conab em anexo ao antigo museu continua mantendo a água e a luz como apoio para a manutenção do espaço.
“A nossa reivindicação é de que mantenha aquele modelo de construção, que é histórico. Nós estamos aguardando que o governo federal cumpra o seu dever, porque ele é signatário de todas as convenções e resoluções internacionais. Na questão indígena temos o pior IDH, são as piores políticas públicas, não temos acesso à educação. Então aquele prédio reproduz muito bem as políticas públicas indígenas no Brasil”, critica o advogado.
Uma das lideranças da ocupação, Carlos Pankararu, afirma que os índios estão sendo descartados do diálogo e que o prédio não será entregue sem resistência.
“Ninguém nos informou nada, e nós não vamos entregar isso de graça não. Vai haver resistência e não vai ser pouca, porque nós estamos em pouco aqui, mas podemos trazer reforço de aldeias com mil índios se não tiver uma negociação. Vamos nos juntar com os movimentos sociais do Rio de Janeiro, dos morros, das baixadas, dos ciganos, dos negros e vamos unir as forças e fazer protesto”, afirmou.
Universidade Aberta Indígena
Urutau Guajajara, mestrando em linguística na Uerj e professor da língua Tupi na ocupação do Museu. Foto: Renan Oliveira.
A proposta dos índios é criar uma universidade no casarão do antigo Museu no Índio, como se fosse um centro de cultura. Isto já é relativamente desenvolvido em cursos de língua Tupi Guarani durante seis horas aos sábados para cerca de 20 alunos, muitos deles professores de universidades e escolas. E também ocorrem encontros mensais, quando são realizadas manifestações culturais, rituais, pinturas de corpo, comidas típicas das etnias na cozinha coletiva, ensinadas medicinas nativas e contadas histórias das tradições indígenas.  A proposta, segundo os ocupantes, é colocar em prática o projeto a partir do momento em que os direitos do imóvel forem cedidos, buscando o apoio de instituições parceiras como o Ministério Público Federal e Estadual, OAB-RJ, Comissão de Direitos Humanos da Alerj, Museu Nacional – UFRJ, Pró-Índio (Uerj), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), organizações indígenas, movimentos sociais, sindicatos, dentre outras.
Para tanto, Guarapirá explica o porquê de se criar uma universidade pensada pelos índios. O objetivo é que se crie uma universidade só para indígena porque hoje o índio tem dificuldade de entrar numa universidade. Muitos nas aldeias estudam só a língua materna local. Quando eles saem para a cidade grande têm dificuldade de falar o português ou outra língua, então é claro que ele não vai passar no vestibular”, afirma.
Segundo ele, no último senso do IBGE foi registrado 30 mil índios só no centro urbano do Rio de Janeiro, mas muitos não se assumem, fora os que estão no interior. Por ser perto do Maracanã, Carlos Pankararu defende a utilização do terreno como ponto turístico, principalmente durante a Copa do Mundo.
“Na universidade de Mato Grosso foram criados cursos para indígenas, com professores não indígenas. Temos parcerias não indígenas da UERJ, UFRJ, UFF e da rural. Nos interessam muito os cursos da Universidade Federal Rural, como gestão ambiental e agronomia. Se comportar podemos também criar um pólo de educação à distância para indígenas. Temos doutorando e mestrando em antropologia linguística, além da área de direito, e vários professores aptos a dar cursos”, explica Urutau Guajajara, de uma etnia do Maranhão, mestrando em linguística na Uerj e professor da língua Tupi na ocupação do Museu.
Objetivo da Funai
Guarapirá Pataxó, liderança vinda da Bahia que está desde o início na ocupação e é responsável pelas questões culturais. Foto: Renan Oliveira.
A visão dos indígenas é bastante crítica em relação à Funai e ao Museu do Índio, ambos em Botafogo, na zona sul carioca. Para eles, a Funai não quer que os índios saiam das aldeias e estudem, pois podem progredir e tomar suas posições, majoritariamente dominadas por brancos.
“Eles sabem que se o índio sair para fazer uma faculdade vai conquistar o seu espaço. Na Bahia mesmo nós temos muitos índios que ocupam cargos de chefe de posto, administração de Funai, médicos, advogados, vereadores. O objetivo da Funai é reprimir mais os índios”, afirma Guarapirá.
A Funai informou em nota que não dá apoio à ocupação porque para que a universidade indígena seja materializada no prédio é necessária a apreciação do Ministério da Educação. A instituição informou ainda que na sua folha de pagamentos são contabilizados 386 indígenas de diversas etnias, e alguns destes ocupam cargos de importância estratégica como o Ouvidor e alguns Coordenadores Regionais.
Quanto ao Museu do Índio, Guarapirá acha que não há um índio caracterizado no local mostrando a sua cultura, e sim artesanatos vendidos a um preço absurdo embora o material seja comprado muito barato nas aldeias. “É um museu para gringo, que você não vê um índio caracterizado mostrando a sua cultura. Não tem nada a ver com a cultura indígena, a não ser no mês de abril que eles botam uma etnia do Xingu para se apresentar”, disse.
O diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, considera legítimos cidadãos os índios que ocupam o prédio do antigo Museu do Índio e como tais têm todos os direitos de reivindicação e negociação de suas necessidades junto aos órgãos compententes. Segundo ele, o Museu do Índio desenvolve atualmente projetos em parceria com 22 povos indígenas, de todas as regiões do Brasil, para o registro de suas línguas e culturas gerando acervos entregues às comunidades.
“Nos últimos dois anos, somamos 493 horas de filmagens de vídeo, 5.612 arquivos sonoros, 321 horas de gravações de áudio, 50.017 fotografias, 49 oficinas nas aldeias e sete no Museu do Índio, em Botafogo, e 105 aldeias abrangidas com população superior a 27 mil pessoas beneficiadas. Hoje, os pesquisadores indígenas, treinados nas oficinas de documentação, já estão produzindo grande quantidade de material por sua própria iniciativa”, afirma o diretor.
Urbanidade étnica
O ex-presidente da Funai e professor de antropologia da UFF e UFRJ, Mércio Pereira Gomes, elaborou um laudo antropológico que atesta a ancestralidade dos indígenas que ocupam o Museu, já que autoridades, com o fervor da mídia, a contestaram pouco depois da ocupação. No laudo é citado o valor “simbólico e sagrado do antigo ‘Museu do Índio’”, e a busca indígena por uma forma própria cultural de “um comunitarismo urbano”.
“Os índios que vivem atualmente nas dependências do velho Museu do Índio são membros reais e auto-conscientes de suas comunidades originais. Vivem como índios em suas comunidades e terras, (…) aqui eles estão porque querem viver outra vida. Os índios mencionados, e outros mais, que vêm e vão, estão nesse velho prédio do Museu do Índio, porque, conscientemente e também inconscientemente, querem inventar um novo modo de ser indígena. Não querem deixar de ser índios! Querem ser índios de um modo diferente, como gente urbana, no remoinho da cultura brasileira”, afirma o ex presidente da Funai.
O antropólogo defende que os índios querem entender por dentro o que é o mundo dos brasileiros não indígenas, pois sem isso “eles terão poucas chances de sobreviver, manter suas culturas, preservar seu senso de universo e sentimento sagrado, diante das avassaladoras mudanças por que passa a civilização contemporânea”. Nesse sentido, o antropólogo reivindica esse espaço como novo ponto de vivência urbana transcendental para os índios na cidade.
(*) Colaborou Alexandre Braz, estudante de jornalismo. Reportagem publicada originalmente na edição de julho da revista Caros Amigos. Fotos adicionadas na edição do Fazendo Media.