Mudança de hábitos alimentares leva doenças crônicas às aldeias
Alterações nos padrões alimentares e de atividade física têm provocado drásticas transformações na saúde indígena, levando para as aldeias problemas como obesidade, hipertensão arterial e diabetes. Essa foi a principal conclusão do 1º Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, maior estudo sobre a saúde dos povos indígenas já realizado no país. Apresentado na 74ª reunião da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi) do Conselho Nacional de Saúde, em Brasília, em 26 e 27 de julho, o estudo teve seus primeiros resultados divulgados por dois de seus coordenadores, Carlos Coimbra e Andrey Cardoso, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), e tratou das recentes transformações observadas na situação alimentar e nutricional e seus fatores determinantes, em crianças indígenas menores de 60 meses de idade e em mulheres indígenas de 14 a 49 anos no Brasil. A pesquisa também apontou altas prevalências de desnutrição (em crianças) e de anemia (em mulheres e crianças).
Foto: Adriano De Lavor
Coimbra , que coordenou o estudo com Andrey: “precisamos ir além da roça, entrar no supermercado e na cozinha a gás”
O inquérito teve a participação de pesquisadores de dezenas de instituições brasileiras, sob coordenação geral de pesquisadores da Ensp — além de Coimbra e Andrey, Ricardo Ventura Santos — e da Universidade Federal de Pelotas — Bernardo Horta. Na Ensp, a equipe conta também com a participação de alunos dos programas de pós-graduação da Escola e egressos. Os pesquisadores fizeram sua apresentação ao lado de representantes de setores interessados na condução das ações de saúde indígena no país, como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pela área no Ministério da Saúde, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e lideranças indígenas, como Edmilson Canale Terena, do Conselho Indígena de Cuiabá e coordenador do Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi). Edmilson Terena considerou que os resultados refletem a situação “crítica e caótica da saúde indígena” e a falta de resolutividade da Funasa — “se estivesse tudo bem, não estaríamos pleiteando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)”.
INTERSETORIALIDADE E PROTAGONISMO
A secretaria a que Edmilson Terena se refere é uma das seis previstas para o Ministério da Saúde, segundo o Projeto de Lei de Conversão (PLV 8/2010) da Medida Provisória (MP 483) que modifica a estrutura da Presidência da República. Aprovado no Senado em 3 de agosto, o Projeto de Lei depende da sanção do presidente Lula.
Os defensores da proposta da secretaria advogam que, com a retirada da Funasa, o atendimento à saúde indígena seguirá um “novo modelo de gestão focado na intersetorialidade”. Diante de problemas apontados pelo estudo — desnutrição e anemia entre crianças e obesidade, hipertensão arterial e diabetes entre mulheres adultas — Edmilson comentou: “Se já temos este diagnóstico, temos que tomá-lo como norte”.
Ele lembrou que muitos dos problemas são velhos conhecidos e têm como origem a falta de saneamento e a baixa qualidade da água consumida pelos índios (Tabela 1), que levam a problemas como a diarreia (Tabela 2). Os dados indicam a necessidade de ações permanentes e uma solução para além do setor Saúde, como observa Edmilson, que defendeu o protagonismo: “Cansamos de ser coadjuvantes”.
Para Carla Teixeira, representante da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) na Cisi, o estudo demonstra, além da complexidade da situação dos índios, que o modelo de atendimento implementado nas áreas está mais focado no tratamento do doente e que os dados serão importantes para ajudar a implementação de uma alternativa “mais fiel aos preceitos do SUS, com promoção à saúde no subsistema de saúde indígena. Além disso, revela também a disposição dos índios em se colocarem como sujeitos do processo, no sentido de “ditarem o rumo e o ritmo das mudanças”.
TRANSIÇÃO EPIDEMIOLÓGICA E NUTRICIONAL
O inquérito trouxe à tona outras informações importantes sobre o perfil atualizado das sociedades indígenas no Brasil — são aproximadamente 500 mil pessoas, divididas em mais de 200 etnias, e que falam cerca de 180 línguas. As terras indígenas constituem aproximadamente 15% do território nacional, ausentes apenas no Piauí e no Rio Grande do Norte.
Os dados retratam que os índios experimentam importante transição nos modos de produção e consumo de alimentos. Os sistemas de subsistência indígenas foram afetados por fatores como a redução territorial e a pressão exercida pela expansão dos projetos de colonização rural e empresas agropecuárias, garimpos e indústria extrativista, além de sofrerem as consequências de ambientes degradados.
Muitas comunidades indígenas, em particular, nas regiões onde as extensões das terras são menores, como no Nordeste e Sul/Sudeste, já não comem mais aquilo que produzem, ocasionando um processo que os pesquisadores definem como transição epidemiológica e nutricional (Tabela 3). Essa mudança compromete sua segurança alimentar e a saúde em geral, como demonstram os números.
A tendência de aumento registrada no consumo de alimentos industrializados também tem relação com a introdução de fontes de renda entre os indígenas, oriundas de trabalho assalariado, venda de produtos diversos, aposentadorias e outros benefícios sociais (Tabela 4).
Edmilson considera o programa Bolsa Família “um mal necessário”, já que supre necessidades urgentes das famílias indígenas, embora, por outro lado, estimule o consumo de produtos que não fazem parte da dieta nas aldeias, trazendo problemas como diabetes e hipertensão.
Valdenir Andrade França, coordenador da Cisi e representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), é contrário à distribuição de cestas básicas em locais onde há produção de alimentos. “O governo está criando índios preguiçosos”, alerta.
Clovis Boufler, coordenador adjunto da Cisi e conselheiro nacional de Saúde, destaca a relevância do estudo na política de etnodesenvolvimento e economias sustentáveis em áreas indígenas, objeto de reflexão da comissão desde que era coordenada pela médica Zilda Arns (1934-2010), cujo objetivo é encontrar saídas de acordo com realidades regionais. Ele acredita que o inquérito permitirá a definição de “políticas mais estruturantes” no setor e será utilizado como instrumento de pressão política: “Os parâmetros de urgência da pesquisa sugerem ações imediatas no campo. São áreas de perigo para a saúde”.
O conselheiro defende, ainda, o protagonismo dos indígenas, informando que, cada vez mais, as reivindicações dos índios são levadas em consideração. Na área de segurança alimentar, ele indica que deve existir uma política intersetorial, baseada no diálogo e auxiliada por apoio técnico. E ressalta: “Quando se fala de alimentação, fala-se de um processo produtivo de longo prazo, que exige assistência técnica”. Para ele, os principais problemas apresentados — obesidade e diabetes — devem ter prioridade e exigem programas de combate urgentes, já que são apenas “a ponta do iceberg” e escondem outros problemas.
ANEMIA E SOBREPESO
Os dados do inquérito justificam a preocupação dos integrantes da Cisi. A anemia foi diagnosticada entre os povos indígenas em todas as macrorregiões, atingindo em 51,3% as crianças (Tabela 5). Os índices verificados entre as mulheres, que chegam a 32,7% (Tabela 6), são muito superiores aos descritos em pesquisas para a população brasileira em geral. Os resultados confirmam que a desnutrição, mensurada por meio do indicador baixa estatura/idade atinge uma em cada três crianças indígenas (Gráfico 1). A prevalência supera os 40% na macrorregião Norte.
Por outro lado, o estudo registra a emergência de sobrepeso e obesidade em jovens e adultas indígenas e a ocorrência expressiva de doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão arterial e diabetes. Segundo a pesquisa, além da mudança no padrão alimentar, verifica-se também tendência à redução da frequência e intensidade da atividade física, devido às alterações nas estratégias de subsistência e nos padrões de assentamento.
O binômio alimentos industrializados/sedentarismo pode fornecer explicações para os números que indicam que em torno de 50% das mulheres no Centro-Oeste e no Sul/Sudeste sofrem com sobrepeso e obesidade (Tabela 7), enquanto 15% são atingidas pela hipertensão arterial (Tabela 8). Em relação ao diabetes, o índice de 1,2% verificado no país (Tabela 9) é um alerta, como analisa Ricardo Ventura Santos, um dos coordenadores da pesquisa. “É um valor baixo, mas significativo, pois indica um problema de saúde emergindo”, explica.
Carlos Coimbra considera que as ações em saúde indígena ainda são muito conservadoras e alerta para a complexidade da situação. “A ênfase na autossubsistência é certamente a mais importante, mas há outros aspectos que precisam ser considerados”, defende. Segundo o pesquisador, mudanças importantes estão em curso nas aldeias. Ele citou como exemplo os jovens indígenas que já fazem cursos na área de Saúde e que não estariam dispostos a voltar a trabalhar nas atividades de subsistência tradicionais.
AÇÃO PIONEIRA E MOBILIZADORA
Outra das múltiplas situações de sociodiversidade pode ser observada com a introdução de novas fontes de renda, o que modifica a dinâmica das comunidades. Ele sugere medidas que contemplem não somente a agricultura, mas também sejam educativas no que diz respeito ao consumo de alimentos, como discutir com as comunidades os problemas de saúde que podem decorrer do consumo de sal, óleo e açúcar em demasia.
Coimbra lembra que economia doméstica e atividades econômicas não são excludentes: “Precisamos ir além da roça, entrar no supermercado e na cozinha a gás. Muitos não querem mais a enxada e temos que respeitar isso”. Irânia Marques, representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) na comissão, concorda e complementa: “Os índios nos mostram que são ótimos gestores”.
O pesquisador da Ensp defendeu que a realização de inquéritos de saúde e nutrição indígena deve se tornar uma rotina, de modo que não se perca a continuidade do levantamento de dados, tão importante para a elaboração e acompanhamento de políticas públicas. Para ele, “não podemos perder o comparativo” e, para isso é preciso investir na regularidade desse tipo de estudo.
Os indígenas nunca haviam sido contemplados como segmento específico de análise nas grandes pesquisas nacionais, com exceção dos censos demográficos conduzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, a partir de 1991, passaram a incluir a categoria “indígena” sob o quesito cor/raça. O que se espera é que as informações se transformem em subsídios para a avaliação do subsistema de atenção à saúde indígena e também para o necessário aperfeiçoamento do atual modelo de atenção à saúde indígena no país.
Além disso, espera-se que os dados do inquérito subsidiem a construção de uma linha de base do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional para os Povos Indígenas (Sisvan Indígena), em implantação nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis), contribuindo para a avaliação de ações de saúde conduzidas pelo órgão gestor do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena — atualmente a Funasa — e sirvam de referência para a realização de inquéritos futuros comparativos da tendência da situação de saúde entre povos indígenas. Um caminho para que novas possibilidades, pouco exploradas, possam ter espaço na formulação de políticas: “O quadro é muito mais complexo. A visão tradicional do indigenismo não dá conta”, diz Coimbra.
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