Na Reserva Extrativista de Canavieiras, Bahia, a comunidade aguarda, ansiosa, a ação de Lula contra a as ameaças da política corrupta e do capital degradador
Por racismoambiental,
Cris Faustino* e Tania Pacheco**
No dia 5 de junho de 2009, Dia Mundial do Meio Ambiente, o Presidente da República assinou decreto criando a Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde, no Ceará, pondo fim, teoricamente, a uma luta de quase 30 anos. Três anos antes, num outro 5 de junho, havia criado a RESEX de Canavieiras, na Bahia, cuja comunidade lutava em defesa do território desde 2001. Apesar dos três anos de diferença, a alegria foi a mesma, assim como a expectativa pela assinatura do Contrato de Concessão do Direito Real de Uso, que regulamentaria a posse das comunidades sobre as terras, águas e florestas de mangues que compõem seus territórios.
Há dois dias, este blog noticiou os desdobramentos com relação à Prainha: na ida a Brasília para assinar o CCDRU, terça-feira última, os Prainheiros descobriram que o documento limitava a RESEX à sua área marinha, deixando toda a parte terrestre vulnerável à sanha dos especuladores imobiliários que vêm tentando de todas as formas dela se apropriar. Junto com eles estavam os representantes da comunidade de Canavieiras, que aguardavam há mais tempo, mas foram surpreendidos pela mesma notícia arrasadora: a burocracia e os equívocos do poder público negligenciaram na proteção das terras de Marinha, que são posses legítimas das comunidades. Elas ficaram, assim, vulnerabilizadas ante a exploração ilegítima da carcinicultura e empreendimentos turísticos que desde 2003 pressionam violentamente os moradores e moradoras locais.
Como seus companheiros cearenses, os representantes da comunidade de Canavieiras se recusaram a assinar o CCDRU. E receberam a mesma promessa de que nos próximos dias o documento seria corrigido, e eles, convidados a voltar a Brasília, para a assinatura definitiva. Até que isso seja feito, e a decisão tomada pelo Presidente da República seja respeitada, fica também para a comunidade de Canavieira um sentimento que mistura frustração e esperança. Esperamos, como eles, que antes de deixar o Governo, Lula faça cumprir o que garantiu mediante decreto.
A RESEX de Canavieiras e o justo direito coletivo aos territórios tradicionais
A Reserva Extrativista de Canavieiras está situada no litoral Sul da Bahia. Sua extensão é de 100 mil ha, sendo 85% mar e 15% formados por manguezais, rios e pequenas ilhas costeiras. Essas últimas representam 3% da área, e nelas os pescadores moram ou as utilizam como pontos de apoio e de pesca. A população da RESEX é composta por 2.300 famílias, abrigando sete comunidades: Sede Municipal, Atalaia, Campinhos, Puxim do Sul, Puxim da Praia, Barra Velha e Oiticica, que representam um terço da população do município e dependem diretamente da pesca artesanal. A RESEX representa ainda a maior área de mangue da Bahia e é por isso um importante bem comum da população local e da sociedade, já que os manguezais são ecossistemas determinantes para a reprodução da vida marinha, que por sua vez representa vida e trabalho para milhares de pescadores e pescadoras artesanais no Brasil inteiro.
Compreendendo a importância das terras, águas e mangues para a sua própria sobrevivência e para a sustentabilidade socioambiental, as comunidades organizadas de Canavieiras lutaram e conquistaram a Reserva Extrativista através do decreto presidencial de junho de 2006. Iniciada em 2001, como estratégia de proteção aos bens ambientais, à economia e às culturas locais, a partir de 2003 a luta dessas comunidades sofreu uma reviravolta, ante a chegada da carcinicultura. Com o apoio do poder público local, os empresários do hidronegócio passaram a disputar o território que as comunidades queriam proteger.
A carcinicultura é conhecida internacionalmente por seu caráter extremamente degradador dos bens ambientais e das formas de vida das populações nos locais onde é desenvolvida. Vários estudos acadêmicos, assim como os depoimentos dos moradores das regiões onde ela tem se instalado, já tornaram amplamente públicos os impactos socioambientais negativos desta atividade econômica. Dentre eles, destacam-se a privatização das terras e das águas e o desmatamento das florestas de mangues, seguidos da contaminação desses ambientes pelo uso de venenos e depósitos de rejeitos tóxicos. Outros impactos dessa atividade são o fechamento das passagens das comunidades para o mar e o mangue, lugares onde se dá a vida comunitária, seja pelo trabalho, seja pelas relações socioculturais que caracterizam seus modos de vidas tradicionais.
Nesse sentido, a carcinicultura – junto com a especulação imobiliária, o turismo de massa, os complexos portuários e, mais recentemente, as usinas de energia eólicas – tem sido uma das principais causas dos conflitos ambientais na Zona Costeira do Brasil. Esses conflitos são marcados sobretudo pela violência institucional contra as comunidades organizadas e pelas injustiças e racismo ambiental. Seus reflexos mais evidentes são a concentração de poder e riqueza nas mãos dos investidores e, muitas vezes, dos poderes públicos locais, além da degradação das formas vidas das comunidades tradicionais, dos povos indígenas e quilombolas. Ou seja: das populações que historicamente — a despeito das ausências das políticas públicas como saúde, educação e saneamento — manuseiam os bens ambientais desde longas gerações sem degradá-los e estabelecem com eles fortes laços culturais, simbólicos e, mesmo, sentimentais.
Em Canavieiras, enquanto as organizações comunitárias lutam para garantir suas formas sustentáveis de vida, com uma gestão participativa e a justa garantia dos territórios para quem a ela tem direitos, os carcinicultores, especuladores de terra e outros investidores, com a conivência e anuência da Prefeitura, empreendem múltiplos esforços para implementar suas atividades social e ambientalmente degradantes. E embora toda a área da RESEX conquistada seja composta de terras da União, a grilagem e a especulação imobiliária, tal como na Prainha do Canto Verde, têm representado grave ameaça. É importante dizer que esses crimes estão sob investigação do Ministério Público Federal.
Segundo o Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil, o prefeito Zairo Loureiro, do Partido DEM, é um dos principais responsáveis pelos conflitos ambientais que dificultam até hoje a consolidação da RESEX de Canavieiras e que se acirraram após a sua decretação. Pelos dados do Mapa, os conflitos na região são marcados pelo abuso do poder político do prefeito, que no ano de 2007, articulando imprensa e comerciantes locais, organizou ele próprio um ato público contra a Reserva Extrativista. Servidores públicos, usuários de serviços e comerciários teriam sido obrigados a participar do “evento”, sob ameaça de retaliação contra quem se negasse ou se manifestasse a favor da RESEX.
No contexto desse conflito, as comunidades organizadas sofreram ameaças de morte. Segundo as lideranças locais, poços utilizados para consumo de água e animais foram propositadamente envenenados, para forçar as famílias a saírem da terra. Até os servidores públicos que exerciam seus trabalhos em favor das comunidades e buscando promover a justiça ambiental foram perseguidos e ameaçados.
De acordo com relatório do Centro de Estudos Ambientais PANGEA e do IBAMA, elaborado para a criação da RESEX, o município de Canavieiras é marcado por altos índices de corrupção e “crimes do colarinho branco”. Isso explica, talvez, como historicamente os poderes executivos tomam o público pelo privado e fazem dos seus mandatos eletivos um lugar para o exercício do poder autoritário e a acumulação de riquezas, mediante alianças com as “elites” econômicas. É nessa cultura política que muitos governos municipais se tornam coniventes com a especulação e a grilagem de terras da União e com os projetos econômicos predatórios.
Por outro lado, a força, a coragem e a determinação das comunidades permitiram o avanço em suas conquistas. Mesmo sob as pressões do poder público e da violência dos poderes econômicos, a comunidade mobilizou diversos sujeitos e, com o apoio de Organizações Não Governamentais e do próprio IBAMA/ICMBIO e Ministério Público Federal, conseguiu instituir o Conselho Deliberativo da RESEX e elaborar o seu Plano de Manejo. Atualmente, estão buscando recursos através do INCRA, que já cadastrou os beneficiários da Reserva que têm direito a crédito especial para desenvolvimento comunitário, mas que até hoje não puderam acessar tal direito, devido à inexistência do CCDRU.
O depoimento de um dos moradores da RESEX, que prefere não se identificar, reflete os avanços e o significado da Reserva para a vida comunitária:
“Somos 12 associações de pescadores que trabalham em conjunto. Criamos uma Associação-Mãe para nos representar, sem tirar a autonomia das outras organizações. Estamos construindo 160 casas para os pescadores. Estamos fazendo um monitoramento pesqueiro que vai durar dois anos. Temos um projeto para fortalecimento da cadeia produtiva do Caranguejo Uçá e do Camarão do Mar, criando um selo de origem. Fizemos recentemente um diagnóstico com os extrativistas, e conseguimos adquirir embarcações para o transporte dos estudantes das ilhas para as escolas na cidade. Temos ainda um projeto para construir um estaleiro escola para 40 jovens, dentre outros projetos, que estamos avançando para além da espera dos créditos do INCRA.”
Com a criação do Conselho Deliberativo, resultado de um intenso processo de participação e mobilização comunitária e de outros parceiros, a RESEX e as comunidades beneficiárias se fortaleceram, de modo que os conflitos aparentemente foram amenizados. Entretanto, lamentavelmente a notícia de que o CCDRU da Reserva está elaborado de forma equivocada, desprotegendo as terras da comunidade, é uma situação preocupante e põe em situação de vulnerabilidade o direito coletivo ao seu território.
Nesse cenário, reafirmamos o que escrevemos a respeito da Prainha do Canto Verde: o Presidente Lula precisa fazer valer seus decretos, garantindo também às comunidades de Canavieiras seus direitos coletivos. Para elas, como para os Prainheiros, Lula não pode deixar como marca final de seu mandato um recuo na proteção de seus direitos frente às injustiças e ao Racismo Ambiental daqueles que só pensam na especulação, no lucro e no poder do capital.
* Cris Faustino é integrante da Coordenação Colegiada do GT Combate ao Racismo Ambiental.
** Tania Pacheco integra o GT Combate como participante individual.
FONTE: Combate ao Racismo Ambiental