O bravo Apoena Meirelles
Comecemos com o pai de Apoena, Francisco Meirelles, o Chico Meirelles, para os amigos.
Chico Meirelles foi um dos grandes indigenistas brasileiros de todos os tempos e aquele que fez a ponte entre o período maduro e generoso do velho SPI (1939-1955) com a jovem geração de indigenistas que cresceu e se formou durante a ditadura militar, especialmente a partir da década de 1970. Diferente em muitos modos e ações dos irmãos Villas-Boas, nivela-se à estatura deles por seus feitos e sua dedicação à causa indígena. Entre seus feitos estão: o primeiro contato amistoso com os Xavante liderados pelo grande e sábio Apowen, nas margens do rio das Mortes (1946); o contato com os bravos Kayapó-Mekragnotire, no médio rio Xingu (1957); e o contato com os ariscos Cintas-Largas, no rio Roosevelt (1966). Por cima disso, sobressai sua personalidade extremamente generosa e despojada de veleidades. Os que o conheceram guardaram a memória de um homem que andava sem dinheiro, e quando o tinha era para distribuir para o primeiro que precisasse mais do que ele. Tinha a virtude ou a sina de ser um convicto comunista, membro do Partidão, e leal seguidor de seus ditames. Isto o atrapalhou diversas vezes na vida, na maior delas durante os anos em que viveu na ditadura militar, até 1973, quando faleceu do coração.
Apoena nasceu numa aldeia xavante, onde vivia seu pai nos primeiros anos do contato, e ganhou esse nome em homenagem ao grande líder Xavante. (Sobre Apowen, aliás, ver a postagem nesse Blog sobre o filme “A estratégia xavante” que seu neto Jurandi Siridiwe fez junto com um cineasta brasileiro). Porém, sendo o pai chamado para outras tarefas indigenistas, Apoena acabou sendo criado no Rio de Janeiro. Menino ainda, o pai o levava em suas expedições, como a que resultou no contato com os Mekragnoti, em 1957, quando Apoena tinha apenas 8 anos. A partir de 1966, quando esteve pela primeira vez com os Cintas-Largas, Apoena tomou gosto pelo ofício e virou indigenista.
No auge da ditadura, quando o AI-5 prendia, torturava, cassava e desempregava companheiros seus, Apoena estava nos sertões do rio Javaé procurando um grupo de índios Ava-Canoeiro que viviam por lá e que estavam em perigo de serem assassinados por fazendeiros que se instalavam por seu território. Há poucos anos outra aldeia Avá havia sido atacada e massacrada na região chamada “Mata do Café”, uns 100 km a leste. O contato com um grupo de 9 índios foi dramático e trágico, tal qual vinha sendo a vida desse povo indígena desde 1808, quando foi declarado “incivilizável” por Dom João VI, ao chegar ao Brasil, portanto, sujeito a ataques de extermínio por parte de grupos armados brasileiros. Apoena contatou esse pequeno grupo e teve que levá-lo para um posto indígena dos índios Javaé, na Ilha de Bananal. Não conseguiu do governo federal uma terra para os Avá. Nos primeiros anos morreram dois Avá-Canoeiros, e ao longo dos anos, três mais vieram a falecer, um deles provavelmente intoxicado por pesticidas em fazendas próximas onde for a trabalhar, em 1993. A mocinha virou mulher e casou-se com um índio Tuxá, depois com um Javaé e teve quatro filhas e dois filhos, hoje todos casados com índios Javaé. O velho, a velha, um irmão e ela são os únicos representantes “puros” da banda ocidental dos Avá-Canoeiro, enquanto da banda oriental restam um homem, três mulheres e dois jovens adolescentes vivendo numa terra demarcada e garantida na beira da Usina Hidrelétrica Serra da Mesa, a 200 km de distância dos seus irmãos da Ilha do Bananal.
As décadas de 1970 e 80, Apoena passou principalmente em Rondônia, saindo de vez em quando para alguma outra tarefa, por exemplo, para ser diretor do Parque do Xingu, para ajudar no contato com os Krenhacarore (Panará) e para ajudar no recontato com os Waimiri-Atroari. No mais, deu continuidade ao trabalho iniciado por seu pai. Ajudou a estabelecer um bom relacionamento com os Cintas-Largas, contatou os Suruí, os Zoró e vários grupos Urueuauau. Dirigiu a Administração da Funai em Porto Velho, num tempo de grandes mudanças regionais, imposições militares, imigração em massa de trabalhadores sem-terra e de pequenos e médios fazendeiros que iam se assentando pelos vales do Guaporé e do Ji-Paraná, seguindo a velha trilha da Linha Telegráfica de Rondon, e ampliando pelos lados, invadindo as matas e cerrados, derrubando tudo em vista para plantar café, criar gado e abrir garimpos.
Ainda hoje, Rondônia é o segundo estado amazônico mais desmatado e sofre pela praga dos madeireiros e garimpeiros ilegais e dos invasores de terras. O assédio que madeireiros e garimpeiros fazem aos índios para lhes permitir explorar madeira e garimpar é enorme e muitos povos indígenas têm sucumbido às vantagens aparentes de obter mais dinheiro e mais bens de consumo. Apoena lutou muito contra isso, perdeu cargos em várias gestões da Funai por opor-se a contratos ilegais entre índios e madeireiros. Apesar de seu esforço, a força maior da atração pelo dinheiro falou mais alto com os índios, especialmente entre aqueles que experimentavam a vida nas cidades. Devemos a Apoena a demarcação da maioria das terras indígenas de Roraima, inclusive o Parque Aripuanã, com 2,7 milhões de hectares.
Apoena foi presidente da Funai em 1986, num período muito conturbado, com intrigas entre indigenistas e com um enorme afluxo de índios em Brasília. Sua coragem e despreendimento passaram por cima das críticas do CIMI (Dom Luciano Mendes de Almeira o criticou dizendo que era parte da herança da ditadura, ao que Apoena respondeu com dignidade em carta aberta), de diversas Ongs, de alguns indigenistas, que não entenderam o que estava acontecendo à época, e de diversas lideranças indígenas, inclusive Raoni. Consciente de suas idéias, Apoena sugeriu e conseguiu que o governo fizesse a primeira reestruturação da Funai para dar mais poder e capacidade de ação às administrações regionais. Tal estruturação nova funcionou bem até 1991, quando outro presidente-indigenista incientemente desfez todo seu trabalho, re-centralizando as ações indigenistas em Brasília, o que provocou o aumento de conflitos entre índios e a direção da Funai, pelo influxo maior de indígenas a Brasília procurando soluções a problemas que poderiam ser resolvidos em suas regiões. Por conta disso vários presidentes da Funai foram retirados à força por lideranças indígenas descontentes com suas atuações.
Mesmo aposentado Apoena continuou a trabalhar com povos indígenas, quando algum novo presidente o convidava. Nunca, porém, trabalhou em ou para Ongs indigenistas pois sempre considerou que a questão indígena tinha que ser responsabilidade do Estado, e através da Funai que, bem ou mal, herdara as virtudes e os potenciais do indigenismo brasileiro. Apoena era um rondoniano avant la lettre, acreditava na possibilidade da nação brasileira abrigar e ser generosa com os povos indígenas, sem esquecer que o processo de aculturação dos índios na sociedade brasileira estava apressando o processo de integração e inserção social de diversos povos indígenas.
Quando assumi a presidência da Funai, em setembro de 2003, vários amigos indigenistas me disseram que Apoena desejava voltar à Funai. Pessoalmente não o conhecia, assim, chamei-o para conversarmos. Convidei-o para um cargo de coordenação, ao mesmo tempo em que lhe dei a tarefa de coordenar a região de Rondônia, Mato Grosso e Acre, e trabalhar a relação indigenista com os Cintas-Largas, que há anos vinham sendo assediados por garimpeiros que teimavam em entrar na Terra Indígena Roosevelt, para garimpar diamantes no igarapé do Lage. Apoena viajava com freqüência para essa região e tinha um bom diálogo com os Cintas-Largas. Achava que eles se davam conta dos riscos do garimpo ilegal, mas estavam presos à roda viva dos pequenos benefícios do garimpo, das dívidas contraídas nas cidades e das pressões dos garimpeiros para abrir-lhes suas terras. A hecatombe que se deu em 7 de abril de 2004, quando 29 garimpeiros foram mortos por um grupo de guerreiros Cintas-Largas, foi acompanhada pari passu por Apoena, que tentou de tudo para arrefecer a possibilidade de gente da cidade querer entrar na terra indígena para retirar os corpos sem a permissão dos índios e da Funai, e, ao final, acontecer um desastre de ataques mútuos de proporções ainda maiores.
Nos meses seguintes Apoena se desdobrou em reuniões com lideranças Cintas-Largas tanto de Rondônia quanto do Mato Grosso, com policiais federais e com autoridades estaduais. Sugeriu uma força-tarefa do Governo Federal, com determinação presidencial em forma de decreto, para vigiar as entradas de garimpos e para fortalecer o desenvolvimento econômico dos Cintas-Largas, o que veio acontecer alguns meses depois. Entrentanto, em outubro de 2004, na volta de uma de suas idas aos Cintas-Largas e à cidade de Cacoal, onde está localizada a Administração Regional da Funai, viagem realizada com o intuito de reformar aquela administração, quando passava por Porto Velho para ir a Brasília, Apoena foi assassinado por um rapaz de menor idade num assalto feito dentro do hall de entrada de uma agência do Banco do Brasil.
A morte de Apoena, nessas trágicas circunstâncias, foi sentida por todo o indigenismo brasileiro. Sua estatura pessoal, seu carisma, seu modo de se relacionar com os índios, sua lealdade a amigos, sua sabedoria eram reconhecidos por todos que o conheciam. Apoena tinha muito ainda que dar ao indigenismo brasileiro e aos povos indígenas.
Alguns analistas do indigenismo brasileiro já quiseram colocar em campos opostos, como se fossem duas orientações distintas, por um lado, os irmãos Villas-Boas, e por outro, Chico Meirelles. Um seria proponente do isolamento dos índios em uma redoma cultural. O outro a favor da assimilação. Dessa última, Apoena seria um seguidor. Na verdade, esta é uma análise simplória de toda a questão indígena brasileira. Tanto os Villas-Boas quanto Chico Meirelles eram a favor da autonomia cultural dos povos indígenas e do papel do Estado em ajudá-los a ganhar forças para enfrentar as injunções assimilacionistas que os ameaçavam. Os irmãos Villas-Boas dedicaram suas vidas ao estabelecimento do Parque Indígena do Xingu com a especificidade cultural que lhe é própria. Chico Meirelles trabalhou em frentes diversas e nunca se dedicou exclusivamente a uma situação.
Apoena, como representante exemplar da geração que amadureceu nas décadas de 1970 e 1980, sabia das pressões integracionistas e assimilacionistas, mas lutava para promover uma Funai forte capaz de segurar ou arrefecer esse processo sobre os índios para que este ganhassem tempo para se fortalecer com instrumentos políticos-culturais próprios e sincréticos que os ajudassem a enfrentar os desafios que estavam para vir pela frente. Tais desafios são não somente aqueles que aparentam perigo iminente, como a pressão dos interesses econômicos, mas aqueles que parecem chegar como indutores da ampliação do conhecimento do mundo moderno, como a educação escolar formal, a vivência nas cidades, o uso de tecnologias modernas e a participação política nas vilas, nas cidades e no panorama nacional. Porém, como em todo processo cultural, a tudo há que se pagar um preço, e a fatura final é o processo de inserção dos povos indígenas na sociedade nacional.
Portanto, sem fugir a esses desafios, como muitos o fazem (e se perdem em ingenuidades e extravagâncias discursivas formais que só prejudicarão os povos indígenas), a atitude e a visão de Apoena sobre essa problemática indigenista são coerentes com a tradição rondoniana e com as possibilidades inerentes na cultura brasileira. Eis o seu legado a ser compreendido, emulado e adaptado aos novos tempos pelas novas gerações de indigenistas.
FONTE: Blog do Mércio