terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sertanista: A fase é difícil para os povos indígenas


Sertanista: A fase é difícil para os povos indígenas

Ali Karakas/Divulgação

Terra Indígena Pimentel Barbosa, do povo Xavante, em frente a fazenda do Grupo Magg, no Mato Grosso. Sertanistas contribuiram para garantir os territórios indígenas

Felipe Milanez
de Manaus (AM)

Odenir Pinto é sertanista e indigenista. Profissão no Brasil de quem defende os índios, representando o estado brasileiro. Em 2010 completam cem anos da criação de órgão oficial, republicano, que representa a defesa dos índios. Hoje, desde 1967, a Funai. Antes, criado por Rondon em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

Seu avô era sertanista, seu pai era sertanista, e ele nasceu na aldeia Bakairi, no Mato Grosso, na época do contato com um subgrupo do povo Xavante que permanecia evitando a aproximação com a sociedade nacional.

Viveu com os Xavante e os Bakairi. Fala as duas línguas desses povos com fluência.

Durante a sua carreira, foi exonerado da Funai, por perseguição política, e chegou a ficar exilado dentro de um território xavante. Foi anistiado em 1993.

No dia 28 de outubro, ele contou, no SESC Consolação - SP, suas experiências no sertão, no ano em que o Brasil celebra o centenário da criação do indigenismo, pelo Marechal Candido Rondon.

Confira a entrevista.

Terra Magazine - Como definir o trabalho do sertanista?

Odenir Pinto - A atividade de sertanista vem de muito tempo. Há registros deles desde começinho do ano de 1600, dentro dos Estados de São Paulo, Minas, Paraná e Bahia, principalmente. Evidente que eram pessoas irrequietas, querendo expandir as fronteiras de exploração, em busca de riquezas minerais, e ficaram conhecidas e reconhecidas oficialmente como sertanistas.
Mas somente no começo de 1950, com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em pleno funcionamento, o trabalho do sertanista passa a fazer parte de uma atividade de um órgão de proteção aos índios. Estes, bem mais idealistas e humanistas do que irrequietos - e não vou citar nomes para não cometer injustiça -, dão um sentido nobre a essa atividade porque para exercê-la é preciso apego à causa, renúncia a qualquer tipo de conforto, ser obstinado para não desistir diante do inesperado e dispor de meios, recurso, para sustentar as expedições até o momento do contato pacífico.
Convenhamos que não era fácil, por isso precisava ter uma última coisa: articulação para convencer todo mundo de que o trabalho de proteção aos povos indígenas era uma coisa que o Brasil precisava fazer. Na maioria das vezes as expedições eram bancadas com recursos oficiais, e é por isso que o SPI e a Funai (que surgiu em 1967) puderam desenvolver essa atividade com um mínimo de planejamento, sendo executadas sem grandes riscos para o sertanista e sua equipe serem massacrados pelos índios. Mesmo assim, houve alguns casos, como o de Pimentel Barbosa e Gilberto Figueiredo, só para citar os mais conhecidos, que foram assassinados em atividade. Mas também as Igrejas, no passado e no presente, quiseram fazer contatos com povos isolados. Alguns deram certos e outros nem tanto. Atualmente as Ongs também estão entrando nessa atividade - inclusive com recursos financeiros oficiais e do exterior.
Não vejo o trabalho do sertanista contemporâneo muito diferente do daquele que trabalha com povos indígenas já contatados, que vivem em aldeias. E também acho que ser sertanista agora é mais fácil. Daqueles do passado tenho grande admiração, até mesmo porque eles sabiam que depois do contato pacífico, esse povo sucumbiria. Mas eles tinham de obedecer a ordens - e acho que eles sofriam muito com isso.

Como começou sua vida sertanista?
- Fiz o primeiro concurso público, nacional, para seleção de candidatos a técnico indigenista, em fevereiro de 1969. Após o concurso fiz o primeiro curso de indigenismo, que ficou conhecido como o "curso piloto de indigenismo". Foram seis meses de teoria e seis meses de prática. Sendo que no teórico, na Enap (Escola Nacional do Servidor Público), em Brasília, por seis meses, e mais outros seis meses vivendo em alguma aldeia para elaborar um "projeto" para aquela comunidade onde o novo indigenista estava estagiando.
Depois de análises, por uma comissão, do desempenho da parte teórica em Brasília e na aldeia, o estagiário, ainda, era enviado para o mato, para um curso de "sobrevivência na selva", ministrado por sertanistas e que durava, em geral, trinta dias.
Fiz o meu no Xingu, orientado por Orlando Villas Boas, entre outros. No período teórico em Brasília recebi, também entre outros, aulas de Chico Meireles.
Em 1984, 1985, não me lembro bem, fui promovido a sertanista. Não por mérito, mas porque na carreira de técnico indigenista não havia mais como ser promovido, atendendo a legislação de CLT, se não fosse como sertanista. E foi assim que passei a exercer esse cargo, essa função, de sertanista.
Meu avô, Otaviano Calmon, que entrou no "serviço de índio", como eles designavam o trabalho indigenista, terminou por fazer parte da Comissão Rondon, que entrou por Mato Grosso em direção a Rondônia e criou a primeira Inspetoria do SPI, no Centro Oeste, sediada em Cuiabá-MT.
Meu pai, Pedro Vanni de Oliveira, e minha mãe, Joana Pinto de Oliveira, também fizeram parte disso e foram viver entre os Bakairi, na margem direita do rio Paranatinga, no médio norte do Mato Grosso. Também foi ali que meus pais tiveram o primeiro contato pacífico com um grupo Xavante, aqueles que escaparam dos massacres promovidos por expedições armadas, financiadas pelo governo de Mato Grosso e por empresários que desejavam ocupar essa região entre o nordeste de Mato Grosso e o sul do Pará.

Com quais povos trabalhou?
Nasci no Posto Indígena Bakairi, entre o povo homônimo. Após o concurso e o curso indigenista fui designado para trabalhar com os Mura Apirahã, no baixo Amazonas. Depois de quase três anos, voltei para Mato Grosso, porque o governo precisava de alguém que falasse a língua Xavante, uma vez que esse povo havia rompido relação pacífica com o governo. (Acho que com quase todo mundo, sem exagero, porque eles resolveram demarcar suas terras).
Depois voltei a trabalhar com os Bakairi, não aqueles onde nasci, mas com os que vivem até hoje na região do Rio Novo, na terra indígena Santana.
Em seguida fui trabalhar na frente de atração Peixoto de Azevedo, norte de MT, entre aqueles que o governo e a imprensa chamavam de "índios gigantes", os Krenacarore, hoje Panará. Com a transferência destes para o Parque do Xingu, fui trabalhar entre os Xavante, no Leste de MT. Muitos anos depois, como Superintendente e/ou Administrador da Funai, com inúmeros povos da Amazônia e do Centro Oeste brasileiro.

O que você aprendeu no convívio com os índios, que mais tenha marcado sua vida?
Ora, ora, uma boa parte do que sei e do que sou aprendi com eles (Parece uma resposta politicamente correta, mas é assim).

Como você vê a relação do Brasil com os índios?
Este país é um pouco indígena, mas cada vez mais as pessoas que vivem por aqui querem ter algum compromisso com a proteção desses povos. Ainda não sabem como fazer isso. Há uma pesquisa recente, promovida pelo Instituto Socioambental (ISA), que mostra que cerca de 80% dos brasileiros querem a demarcação das terras indígenas. Para mim isso é surpreendente! Uma bela notícia! Aqui entre nós, dá para esquecer o passado e apostar no presente, no futuro.

Qual foi o período mais difícil para os índios, durante os anos que você trabalhou com eles?
Houve um período muito difícil para os índios e para todos que estavam com eles. Foi no intervalo - que durou anos - entre a extinção do SPI e a criação da Funai. Lembro-me que nesse período, estudando na cidade, e quando podia visitava a aldeia onde meus pais trabalhavam, eu os encontrava em desespero, sem saber a quem recorrer, e os índios estavam morrendo sem qualquer assistência e inteiramente entregues à míngua. Acho que os militares, que de quando em quando aterrissavam seus aviões na pista da aldeia, para distribuir caixas de estiletes, facas, punhais, etc, não queriam socorrer os doentes porque sabiam o que estavam fazendo.
A ditadura militar correu de volta para onde nunca deveria ter saído; muitos indígenas sobreviveram a esse período; se organizaram e ajudaram a escrever uma Constituição que deu sequência às leis que transformaram o Brasil, desta vez incluindo eles também.
Muitos anos depois da ditadura militar, estamos assistindo agora outra fase muito difícil para os povos indígenas. Estamos vendo uma política deliberada para extinguir o único órgão indigenista que tem conversado com eles nos últimos tempos; que tem tentado demarcar seus territórios; que tem tentado proteger seus meio-ambientes e suas culturas.
Certamente, este período vai ser o mais difícil para eles superá-lo. Não há mais o sujeito fardado que deixou momentaneamente a caserna para se aventurar numa coisa que não tinha legitimidade e nem conhecia, mas há agora o sujeito que disputa com eles o emprego, inclusive no órgão indigenista, porque precisa fazer caixa do seu partido político com seus 10% de salário. E esse partido político é legitimamente eleito pelo povo brasileiro.

Em duas semanas haverá eleições para presidente da República, e o tema indígena não tem sido abordado. Como o futuro pode ser melhor para os índios?
Será o dia em que um partido político que ganhar a eleição para presidente da República tiver no seu programa de governo uma agenda para a questão indígena, algo de planejamento estratégico para proteção das terras e promoção das culturas dos povos indígenas. Só isso.

Felipe Milanez é jornalista e advogado, mestre em ciência política pela Universidade de Toulouse, França. Foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai, e da revista National Geographic Brasil, trabalhos nos quais se especializou em admirar e respeitar o Brasil profundo e multiétnico.

Fale com Felipe Milanez: felipemilanez@terra.com.br

FONTE: Terra