quarta-feira, 30 de junho de 2010

Serviços públicos essencias: interrupção ou continuidade?

Serviços públicos essencias: interrupção ou continuidade?
Elaborado em 06.2010.

Rodrigo Emiliano Ferreira

Defensor Público do Estado de São Paulo


1.Introdução

É princípio da Administração Pública a continuidade dos serviços públicos.

A par disso, o Código de Defesa do Consumidor, em dispositivo corajoso, mas que, desgraçadamente, não vem sendo aplicado a contento, consagra a continuidade dos serviços públicos essenciais, aos dispor, em seu artigo 22, que: "Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros, e, quanto aos essenciais, contínuos".

A aplicação do Código de Defesa do Consumidor, porém, encontra obstáculo, declarado pelo Poder Judiciário, na Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.

Diz o caput do artigo 6º da mencionada Lei 8.987/95 que: "Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato".

A definição do que seja serviço adequado vem no parágrafo 1º do mesmo artigo, sendo tido como aquele que: "(...) satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas".

O parágrafo 3º, do mesmo artigo 6º, contudo, abre exceção à continuidade do serviço, ao estabelecer que: "Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: (...) II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade; (...)".

A título meramente ilustrativo, citamos o seguinte julgado, do Superior Tribunal de Justiça, cuja Jurisprudência amplamente dominante é pela possibilidade de suspensão dos serviços essenciais, em caso de inadimplemento do consumidor, dando aplicação ao artigo 6º da Lei 8.987/95, e afastando a incidência do CDC:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. CONSUMIDOR INADIMPLENTE.

POSSIBILIDADE. ESSENCIALIDADE DO SERVIÇO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO.

1. A Jurisprudência assente deste Tribunal entende pela possibilidade de corte no fornecimento de energia elétrica desde que, após aviso prévio, o consumidor permaneça em situação de inadimplência com relação ao respectivo débito, nos termos do estatuído no art. 6º, § 3º, da Lei 8.987/95. Precedentes: Recursos especiais n. 363.943/MG e 963.990/SC.

2. In casu, o Tribunal de origem entendeu que a mera inadimplência do consumidor não constituía motivação suficiente a ensejar o corte no fornecimento de energia elétrica por resultar em ofensa ao princípio da continuidade do serviço. Tal posicionamento contraria a jurisprudência do STJ, haja vista que não foi comprovada a essencialidade do serviço prestado, nem tampouco ficou evidenciado tratar-se de débito pretérito, hipóteses essas que impedem a suspensão do serviço.

3. Recurso especial parcialmente conhecido, e, nessa parte, provido.

(REsp 800.586/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/09/2008, DJe 23/10/2008).

Ainda que a Jurisprudência nacional, de forma quase que pacífica, admita a suspensão de serviços públicos essenciais, como o fornecimento de energia elétrica ou abastecimento de água, em caso de inadimplemento do usuário, pessoa física, buscaremos aqui demonstrar que o Poder Judiciário, em especial o Tribunal de Justiça de São Paulo, tem aberto exceções a esta regra, e, em situações excepcionais, dando aplicação a princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, tem determinando a continuidade da prestação do serviço ao consumidor, ainda que inadimplente.


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2.Definição de Serviços Públicos Essenciais

Inicialmente, cumpre esclarecer que não há, nem na doutrina, nem na Jurisprudência, indicação precisa acerca de quais serviços públicos devem ser considerados essenciais.

Há doutrinadores que afirmam que todos os serviços públicos são essenciais, característica que decorreria de sua própria natureza de publicidade. Mas há outros que tomam como parâmetro para tal definição o rol de serviços indicados nos incisos do artigo 10 da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências.

Segundo o texto da Lei 7.783/89 são considerados serviços ou atividades essenciais o tratamento e abastecimento de água; a produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; a assistência médica e hospitalar; a distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; os serviços funerários; o serviço de transporte coletivo; a captação e tratamento de esgoto e lixo; o serviço de telecomunicações; a guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; o processamento de dados ligados a serviços essenciais; o controle de tráfego aéreo e a compensação bancária.

Para o presente estudo, que tem por objetivo a análise da possibilidade de suspensão dos serviços públicos essenciais, ganham relevância os serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto, fornecimento de energia elétrica e serviço de telecomunicações, eis que estes, via de regra, têm sua exploração concedida a pessoas jurídicas de direito privado, sociedades empresárias, que não titubeiam em proceder sua interrupção em caso de inadimplência.

De início, a vida prática revela que, ainda que em caso de não pagamento, a coleta de esgoto não é interrompida, por impossibilidade técnica, pois não se vislumbra hipótese de que a rede de esgotos do consumidor seja desligada da rede de coleta. Via de regra os serviços de coleta de esgoto e de abastecimento de água são prestados pela mesma empresa, que se limita à interrupção deste último.

De outro lado, o serviço de telecomunicações, cuja suspensão, ao usuário pessoa física, normalmente se manifesta no desligamento da linha telefônica, não tem contornos de essencialidade. Tal se dá pela possibilidade de utilização de telefones públicos, ou mesmo de celulares pré-pagos, amplamente difundidos no país entre os consumidores.

Em se tratando de repartições públicas, pode-se argumentar que o serviço de telefonia, ou mesmo de conexão à internet seja essencial, notadamente em razão do interesse público aí presente, mas isso foge ao objeto desta reflexão.

Em breve comentário, en passant, diga-se que o Superior Tribunal de Justiça tem declarado, de forma recorrente, não ser lícita a suspensão de serviços essenciais a repartições públicas, ainda que em caso de inadimplência, quando tal possa atingir os interesses da coletividade. Vejamos os seguintes julgados:

SUSPENSÃO DE LIMINAR. ILUMINAÇÃO PÚBLICA. CORTE. A iluminação pública é indispensável à segurança dos cidadãos; a inadimplência do Município quanto ao pagamento do respectivo serviço não justifica o corte do fornecimento da energia elétrica necessária para esse efeito. Agravo regimental não provido.

(AgRg na SLS 1.048/CE, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, julgado em 07/10/2009, DJe 05/11/2009).

ADMINISTRATIVO – SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA DO MUNICÍPIO – FALTA DE PAGAMENTO.

1. É lícita a interrupção do fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o Município não quita sua dívida junto à concessionária de serviço público. Contudo, o corte não pode ocorrer de maneira indiscriminada, de forma a colocar em risco o interesse público.

2. Impossibilidade do corte para a sede da prefeitura, o posto de saúde e o cemitério público do Município.

3. Recurso especial não-provido.

(REsp 734.440/RN, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2008, DJe 22/08/2008).

O mesmo não ocorre, contudo, como já exposto na introdução do presente estudo, quando o consumidor inadimplente é pessoa física, hipótese em que o STJ tem se manifestado pela possibilidade da suspensão do serviço.

Assentadas as duas primeiras premissas, quais sejam, a de que são serviços essenciais, sem prejuízo de que outros também o sejam, o abastecimento de água e o fornecimento de energia elétrica, e a de que a Jurisprudência pátria consolidou-se pela possibilidade de suspensão dos serviços públicos essenciais, em caso de inadimplemento do consumidor, passemos adiante.


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3.Hipóteses Excepcionais de Manutenção do Serviço

Neste ponto há de se ressaltar que as concessionárias, em que pese, via de regra, sejam pessoas jurídicas de direito privado, que exercem sua atividade visando à obtenção de lucro, prestam serviço público, essencial. Verifica-se aí, de plano, um choque de valores. De um lado a busca do lucro pelas concessionárias, e, de outro, a essencialidade e necessidade do serviço, por parte dos consumidores, que, por vezes, não têm como arcar com a contraprestação.

Como dito, os serviços de fornecimento de energia elétrica e de abastecimento de água são essenciais, básicos. Não se pode conceber, atualmente, que imóvel residencial situado em centro urbano seja desprovido de água ou de energia elétrica. A falta de tais bens ofende direitos básicos de todo cidadão, consagrados pela Constituição da República:

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

(...)".

"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Como ressaltado, o Brasil é Estado Democrático de Direito, e o conceito de democracia, trazido pela Constituição da República, não se limita ao direito de votar e de ser votado, mas sim, e de não menos importância, consiste no direito ao exercício da dignidade de cada cidadão, que se evidencia, aqui, no acesso aos serviços estatais básicos.

Mesmo sendo de profunda importância a discussão, em abstrato, da possibilidade da suspensão de serviços públicos essenciais, é inegável que a Jurisprudência majoritária entende ser lícita a interrupção. Algumas situações, contudo, em respeito à dignidade da pessoa humana, e de outros princípios superiores, consagrados pela Constituição, como o direito à saúde e mesmo à vida, merecem especial consideração.

Como já dito, em havendo concessão da exploração de serviços públicos instaura-se, desde logo, um conflito de interesses. Da concessionária, que busca o lucro com a exploração, e do consumidor desses serviços, de regra, essenciais e monopolizados.

De fato, o Tribunal de Justiça de São Paulo, seguindo a mesma linha do Superior Tribunal de Justiça, vem se manifestado, na maioria dos julgados, pela possibilidade da suspensão do serviço em caso de não pagamento. O Tribunal de Justiça paulista, porém, atenta ao fato de que, em circunstâncias peculiares, o serviço não deve ser suspenso, ainda que disponibilizado ao consumidor inadimplente. Ressalta o Tribunal que, nestes casos, devem prevalecer princípios e valores mais elevados, tais como o interesse coletivo, a dignidade da pessoa humana, e mesmo o direito à vida, todos consagrados constitucionalmente. Vejamos:

Apelação Com Revisão 1046145009

Relator(a): Antonio Benedito Ribeiro Pinto

Comarca: F.D. GUARAREMA/MOGI DAS CRUZES

Órgão julgador: 25ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 27/11/2007

Data de registro: 27/12/2007

Ementa: ... terceiro, inciso II, da Lei n° 8.987/95) - O corte do fornecimento de serviços essenciais como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana - A fornecedora tem outros meios jurídicos e legais para efetuar a cobrança do débito - Nego provimento ao recurso. Mantenho a segurança

Ementa: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS (energia elétrica) - MANDADO DE SEGURANÇA - Legitimidade passiva ad causam - ''Tribunal Regional Federal não é competente para julgar recurso de decisão proferida por juiz estadual não investido de jurisdição federal" (Súmula n° 55 do STJ) - A Lei de Concessões estabelece ser possível a descontinuidade do serviço público desde que não esteja presente o interesse da coletividade, como se vê no caso concreto, por se tratar entidade assistencial a idosos (artigo 6o, parágrafo terceiro, inciso II, da Lei n° 8.987/95) – O corte do fornecimento de serviços essenciais como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana - A fornecedora tem outros meios jurídicos e legais para efetuar a cobrança do débito - Nego provimento ao recurso. Mantenho a segurança como concedida. (grifo nosso)

Apelação Com Revisão 1032727007

Relator(a): Lino Machado

Comarca: São Paulo

Órgão julgador: 30ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 19/12/2007

Data de registro: 11/03/2008

Ementa: Prestação de serviços de fornecimento de energia elétrica - Inadimplemento - Corte Inexigibilidade. Embora seja exigível a dívida pelo consumo de energia elétrica e, em tese, seja possível a suspensão de seu fornecimento, tal sanção deixa de ser aplicada quando, no caso concreto, se constata a aplicabilidade de princípio mais elevado, como o respeito à dignidade do consumidor e de ...

Ementa: Prestação de serviços de fornecimento de energia elétrica - Inadimplemento - Corte Inexigibilidade. Embora seja exigível a dívida pelo consumo de energia elétrica e, em tese, seja possível a suspensão de seu fornecimento, tal sanção deixa de ser aplicada quando, no caso concreto, se constata a aplicabilidade de princípio mais elevado, como o respeito à dignidade do consumidor e de sua sobrevivência. Apelação provida em parte. (grifo nosso).

Em casos também excepcionais, em que o consumidor inadimplente tem severo abalo em sua saúde, de forma que, para ele, o serviço torna-se ainda mais essencial e mesmo vital, o Tribunal de Justiça paulista, dando efetividade aos princípios constitucionais acima mencionados, já decidiu pela manutenção do serviço. Citamos os seguintes julgados:

Apelação 991070172250 (7137556300)

Relator(a): Richard Paulro Pae Kim

Comarca: Pindamonhangaba

Órgão julgador: 21ª Câmara de Direito Privado D

Data do julgamento: 31/01/2008

Data de registro: 07/02/2008

Ementa: ENERGIA ELÉTRICA - POSSIBILIDADE DE CORTE NO CASO DE INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO - Entretanto, na hipótese, o autor é aposentado por invalidez, sendo portador de leucemia meilóide crônica, teve prescrita medicação que exige manutenção em refrigeração, e mais, o estudo social revelou que o autor vive em precárias condições de moradia, possuindo equipamentos domésticos restritos ao mínimo ...

Ementa: ENERGIA ELÉTRICA - POSSIBILIDADE DE CORTE NO CASO DE INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO - Entretanto, na hipótese, o autor é aposentado por invalidez, sendo portador de leucemia mielóide crônica, teve prescrita medicação que exige manutenção em refrigeração, e mais, o estudo social revelou que o autor vive em precárias condições de moradia, possuindo equipamentos domésticos restritos ao mínimo indispensável para atender as necessidades básicas do grupo familiar - Direito à vida que deve prevalecer sobre os demais dispositivos infraconstitucionais, na espécie - Nega- se provimento ao recurso. (grifo nosso).

Apelação 991070156906 (7136021100)

Relator(a): Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues

Comarca: São Paulo

Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado D

Data do julgamento: 17/12/2007

Data de registro: 23/01/2008

Ementa: ... consumidor. Depois da passagem da água pelo hidrômetro, a responsabilidade não é mais da concessionária. Suspensão do fornecimento de água para consumidora pobre, deficiente visual, que mora sozinha, para compeli-la ao pagamento de cofitas de água. Impossibilidade. Aplicação do artigo 22 do CDC e dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana. Recursos não ...

Ementa: Vazamento de água no interior do imóvel. Consumo imputável ao consumidor. Depois da passagem da água pelo hidrômetro, a responsabilidade não é mais da concessionária. Suspensão do fornecimento de água para consumidora pobre, deficiente visual, que mora sozinha, para compeli-la aos pagamentos de contas de água. Impossibilidade. Aplicação do artigo 22 do CDC e dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana. Recursos não providos. (grifo nosso).

De todo conveniente, no momento, expor, com mais longevidade, a posição que vem sendo tomada pelo Tribunal de Justiça bandeirante. Citamos, aqui, trecho do voto do Desembargador Relator Richard Paulro Pae Kim, que foi fundamento para decisão da Apelação n° 7.137.556-3, originada da 3ª Vara Cível da Comarca de Pindamonhangaba, em que foi Apelante Bandeirante Energia S/A e Apelado Sebastião de Souza Duarte:

"A parte apelante apenas sustenta que o apelado não efetivou o pagamento das contas, razão pela qual teria o direito de efetuar o corte no fornecimento da energia elétrica. Contudo, olvidou-se de considerar acerca do fato de que, como bem salientou o nobre magistrado, "o autor é aposentado por invalidez (fls. 33), sendo portador de leucemia meilóide crônica (fls. 28), teve prescrita medicação que exige manutenção em refrigeração (fls. 29/32). E mais, o estudo social revelou que o autor vive em precárias condições de moradia, possuindo equipamentos domésticos restritos ao mínimo indispensável para atender as necessidades básicas do grupo familiar (fls. 104/108)" (cf. fls. 126).

Ou seja, o nobre magistrado não poderia do ponto de vista da deontologia jurídica, conferir razão ao apelante. Sem dúvida alguma, desprover a pretensão do apelado, já afirmada liminarmente, seria decretar a possível morte do paciente portador de espécie de câncer.

Revelam-se, portanto, interesses legítimos igualmente tuteláveis pelo ordenamento jurídico. Todavia, o direito à vida e o direito à vida com dignidade deve se sobrepor, pelo menos na presente espécie, ao interesse da concessionária em proceder à suspensão do fornecimento de energia ao domicílio do apelado.

Cuida-se de situação especial onde uma pessoa enferma necessita de aparelho elétrico para manter-se viva, sem depender de terceiros, consoante se vislumbra pelas provas trazidas aos autos.

É certo que não é um bom exemplo permitir a utilização de um serviço sem a devida contraprestação, todavia, no caso acima apresentado, está em jogo a vida humana, que se sobrepõe às demais situações, por se tratar de um direito fundamental. Portanto, seria inconcebível que uma vida fosse colocada em perigo, com o desligamento da força, pelo fato de não ter havido o pagamento das taxas de energia elétrica". (grifo nosso).
Outrossim, de teor bastante similar e seguindo o mesmo raciocínio, voto do Desembargador Relator Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues, na Apelação n° 7.136.021-1, originária da Comarca de São Paulo, em que foi apelante a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - SABESP e apelada e apelante adesiva Patrocínia dos Santos:

"O recurso da requerida também não comporta provimento, como já antecipado. A situação não é comum, mas diferenciada, devendo ser analisada à luz dos princípios do Estado de Direito e da Justiça. Há no feito duas teses: a da autora que quer pagar dentro de suas possibilidades, e a da requerida que quer cortar o fornecimento para compelir a autora a pagar.

Acatada a tese da requerida, como a dívida é alta e a autora pobre, a mesma não vai pagar de uma só vez. Vai ficar sem tomar banho, sem cozinhar, sem dar descarga no banheiro, enfim, corre o risco de morrer doente e sem higiene.

Isto ofende todos os princípios constitucionais, da vida, da dignidade, da saúde, etc. Há conflito entre dois valores, e o patrimonial da ré não pode prevalecer, porque a vida com dignidade está acima dele. Assim, na interpretação das leis transcritas pela requerida e do CDC, aplica-se a tese mais benéfica à consumidora, para proibir-se o corte, devendo a ré cobrar pelas vias judiciais". (grifo nosso).

Vê-se, portanto, que em hipóteses singulares a Jurisprudência, notadamente a do Tribunal de Justiça de São Paulo, caminha no sentido da prevalência dos direitos fundamentais do usuário, ainda que inadimplente, sobre o direito de propriedade das concessionárias de serviço públicos essenciais, vedando a interrupção destes.


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4.Conclusão

Ante as peculiaridades de casos concretos, portanto, ainda que seja entendimento amplamente majoritário da Jurisprudência nacional ser possível a suspensão do fornecimento de serviços essenciais, tais como o fornecimento de energia elétrica e o abastecimento de água, em razão do não pagamento das faturas de consumo, haja vista a necessidade da salvaguarda de valores supremos como a dignidade da pessoa humana, a saúde e mesmo a vida, hão de ser abertas exceções ao entendimento dominante, garantindo-se que o consumidor inadimplente não tenha suspensos serviços públicos essenciais.

Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
FERREIRA, Rodrigo Emiliano. Serviços públicos essencias: interrupção ou continuidade? . Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2555, 30 jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2010.
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