Em Defesa dos Direitos Humanos
Jorge Luiz Souto Maior
É com pesar e
grande apreensão que tivemos contato com o texto publicado na Revista Veja,
edição n. 2246.
Pesar pelo fato
do texto desprezar o necessário conhecimento a respeito da Instituição que
ataca, a qual tem prestado reconhecidos serviços, ao longo de vinte anos à
defesa concreta – e não apenas teórica –, em prol da construção de uma
autêntica democracia neste país. Apreensão porque o ataque feito, que parte da
desinformação, representa uma afronta aos pilares dos Direitos Humanos. O
articulista, sem a formação jurídica necessária, provavelmente de boa fé,
portanto, fez uma grave inversão de valores, indo na mesma direção da
estratégia utilizada para a implementação de um regime de ultra direita na
Alemanha nazista. O nazismo, não se pode esquecer, foi um regime baseado na
legalidade estrita. A constatação de que os horrores da guerra tiveram por base
argumentos de legalidade motivou uma profunda alteração nas bases teóricas do
Direito, que proporcionou o advento da concepção internacional dos Direitos
Humanos, para o fim de fazer integrar aos ordenamentos nacionais as regras e
princípios protetivos da condição humana fixados em Documentos Internacionais,
ultrapassando, inclusive, a noção da soberania nacional.
A internacionalização dos
direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente da
história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos
horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador
de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da
descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões
de pessoas. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou
seja, a condição de sujeito de direito, à pertinência a determinada raça – a
raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas
guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto
político e industrial.
No momento em que os seres
humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da
destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se
necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de
restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a
ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da
pessoa humana como valor fonte de direito. Diante dessa ruptura, emerge a
necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma
ético que aproxime o direito da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a
ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou
seja, o direito a ser sujeito de direitos.
Nesse contexto, desenha-se o
esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial
ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra
significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar
sua reconstrução.
Nasce ainda a certeza de que
a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um
Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse
prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão
doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como
legítima preocupação da comunidade internacional.
A necessidade de uma ação
internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o
processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da
sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a
responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições
nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.
O processo de
internacionalização dos direitos humanos – que, por sua vez, pressupõe a
delimitação da soberania estatal – passa, assim, a ser uma importante resposta
na busca da reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional
às atrocidades cometidas no holocausto.
Explicam Richard Pierre
Claude e Burns H. Weston: ‘Entretanto, foi apenas após a Segunda Guerra Mundial
– com a ascensão e a decadência do Nazismo na Alemanha – que a doutrina da
soberania estatal foi dramaticamente alterada. A doutrina em defesa de uma
soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX,
em especial em face das conseqüências da revelação dos horrores e das
atrocidades cometidas das conseqüências da revelação dos horrores e das atrocidades
cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez
com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um
princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos
direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação
internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações
Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela
Assembléia Geral da ONU, em 1948 e, como conseqüência, passam a ocupar um
espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do
pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura
do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se
consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado
pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer
responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano
internacional that King can
nowrong’.
Nesse contexto, o Tribunal de
Nuremberg, em 1945-1946, significou um poderoso impulso ao movimento de
internacionalização dos direitos humanos. Ao final da Segunda Guerra e após
intensos debates sobre o modo pelo qual se poderia responsabilizar os alemães
pela guerra e pelos bárbaros abusos do período, os aliados chegaram a um
consenso, com o Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um
Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra.”
“O significado do Tribunal de
Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo:
não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional como
reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo direito internacional.
Testemunha-se, desse modo, mudança significativa nas relações interestatais, o
que vem a sinalizar transformações na compreensão dos direitos humanos, que, a
partir daí, não mais poderiam ficar confinados à exclusiva jurisdição
doméstica. São lançados, assim, os mais decisivos passos para a
internacionalização dos direitos humanos.”
A eficácia da
racionalidade que põe em primeiro plano a necessária defesa da condição humana
passa, necessariamente, pela integração dos direitos e princípios postos
internacionalmente às realidades internas. Como esclarece Antônio Augusto
Cançado Trindade[4], “os próprios tratados de direitos
humanos atribuem uma função capital à proteção por parte dos tribunais
internos”.
Conforme
expressa o mesmo autor: “Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos
humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e
interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos.”[5]
É neste sentido,
portanto, que “assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua
independência de qualquer tipo de influência executiva”[6].
A independência
dos juízes, para fazerem valer, concretamente, os princípios pertinentes aos
Direitos Humanos, trata-se, portanto, de uma garantia do Estado de Direito. A independência
do juiz, para dizer o Direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como
forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado.
Como explicita
Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida,
é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional
foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar,
para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é
assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na
Constituição.”[7]
A grave inversão
trazida no texto, portanto, é a de justificar que qualquer valor pode ser de
Direito, mesmo que seja supressor da condição humana, apegando-se no argumento
da legalidade estrita. Os juízes alemães, no julgamento de Nuremberg, foram
condenados exatamente por adotarem a postura assumida pelo articulista do texto
que se comenta. Mas, a sociedade brasileira (na qual se inclui o próprio
articulista), pelo menos quanto a este aspecto, pode ficar tranqüila, pois há
juízes no Brasil que não cederão a qualquer tipo de pressão e que continuarão a
cumprir o seu dever, assumido perante a comunidade internacional, de fazer
valer os princípios elencados nos Direitos Humanos, que foram a maior conquista
da humanidade. Afinal, como há muito preconizado por Eduardo Couture: “Da
dignidade do juiz depende a dignidade do Direito. O Direito valerá, em um país
e em um momento históricos determinados, o que valham os juízes como homens. No
dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.”
[1].
Professor Associado da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho, titular
da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí./SP. Membro da Associação Juízes para a
Democracia – AJD.
[2].
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.
[4]. Prefácio da obra, Instrumentos
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Centro de Estudos
da Procuradoria Geral do Estado, 1997, p. 24.