domingo, 29 de julho de 2012


Em Defesa dos Direitos Humanos

Jorge Luiz Souto Maior
   
Jorge Luiz Souto Maior[1]
É com pesar e grande apreensão que tivemos contato com o texto publicado na Revista Veja, edição n. 2246.
Pesar pelo fato do texto desprezar o necessário conhecimento a respeito da Instituição que ataca, a qual tem prestado reconhecidos serviços, ao longo de vinte anos à defesa concreta – e não apenas teórica –, em prol da construção de uma autêntica democracia neste país. Apreensão porque o ataque feito, que parte da desinformação, representa uma afronta aos pilares dos Direitos Humanos. O articulista, sem a formação jurídica necessária, provavelmente de boa fé, portanto, fez uma grave inversão de valores, indo na mesma direção da estratégia utilizada para a implementação de um regime de ultra direita na Alemanha nazista. O nazismo, não se pode esquecer, foi um regime baseado na legalidade estrita. A constatação de que os horrores da guerra tiveram por base argumentos de legalidade motivou uma profunda alteração nas bases teóricas do Direito, que proporcionou o advento da concepção internacional dos Direitos Humanos, para o fim de fazer integrar aos ordenamentos nacionais as regras e princípios protetivos da condição humana fixados em Documentos Internacionais, ultrapassando, inclusive, a noção da soberania nacional.
Vide, a respeito, a seguinte passagem de Flávia Piovesan[2]:
A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente da história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direito, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial.
No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte de direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos.
Nesse contexto, desenha-se o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.
Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da comunidade internacional.
A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.
O processo de internacionalização dos direitos humanos – que, por sua vez, pressupõe a delimitação da soberania estatal – passa, assim, a ser uma importante resposta na busca da reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no holocausto.
Explicam Richard Pierre Claude e Burns H. Weston: ‘Entretanto, foi apenas após a Segunda Guerra Mundial – com a ascensão e a decadência do Nazismo na Alemanha – que a doutrina da soberania estatal foi dramaticamente alterada. A doutrina em defesa de uma soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX, em especial em face das conseqüências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas das conseqüências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU, em 1948 e, como conseqüência, passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional that King can nowrong’.
Nesse contexto, o Tribunal de Nuremberg, em 1945-1946, significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Ao final da Segunda Guerra e após intensos debates sobre o modo pelo qual se poderia responsabilizar os alemães pela guerra e pelos bárbaros abusos do período, os aliados chegaram a um consenso, com o Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra.”
Como explica a mesma autora[3]:
“O significado do Tribunal de Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional como reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo direito internacional. Testemunha-se, desse modo, mudança significativa nas relações interestatais, o que vem a sinalizar transformações na compreensão dos direitos humanos, que, a partir daí, não mais poderiam ficar confinados à exclusiva jurisdição doméstica. São lançados, assim, os mais decisivos passos para a internacionalização dos direitos humanos.”
A eficácia da racionalidade que põe em primeiro plano a necessária defesa da condição humana passa, necessariamente, pela integração dos direitos e princípios postos internacionalmente às realidades internas. Como esclarece Antônio Augusto Cançado Trindade[4], “os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital à proteção por parte dos tribunais internos”.
Conforme expressa o mesmo autor: “Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos.”[5]
É neste sentido, portanto, que “assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência de qualquer tipo de influência executiva”[6].
A independência dos juízes, para fazerem valer, concretamente, os princípios pertinentes aos Direitos Humanos, trata-se, portanto, de uma garantia do Estado de Direito. A independência do juiz, para dizer o Direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado.
Como explicita Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição.”[7]
A grave inversão trazida no texto, portanto, é a de justificar que qualquer valor pode ser de Direito, mesmo que seja supressor da condição humana, apegando-se no argumento da legalidade estrita. Os juízes alemães, no julgamento de Nuremberg, foram condenados exatamente por adotarem a postura assumida pelo articulista do texto que se comenta. Mas, a sociedade brasileira (na qual se inclui o próprio articulista), pelo menos quanto a este aspecto, pode ficar tranqüila, pois há juízes no Brasil que não cederão a qualquer tipo de pressão e que continuarão a cumprir o seu dever, assumido perante a comunidade internacional, de fazer valer os princípios elencados nos Direitos Humanos, que foram a maior conquista da humanidade. Afinal, como há muito preconizado por Eduardo Couture: “Da dignidade do juiz depende a dignidade do Direito. O Direito valerá, em um país e em um momento históricos determinados, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.”



[1]. Professor Associado da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí./SP. Membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD.
[2]. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.
[3]. Idem, p. 123.
[4] Prefácio da obra, Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1997, p. 24.
[5] Ob. cit., p. 24.
[6] Idem, p. 24-25.
[7]. O Poder Judiciário no regime democrático. Revista Estudos Avançados, 18 (51), 2004, p. 152.