quarta-feira, 9 de junho de 2010

O sangue da floresta

O sangue da floresta
Cesar Teixeira

Hubinet Ka’apor, 38 anos, foi assassinado a pauladas no município Centro do Guilherme a mando de fazendeiros que praticam a extração ilegal de madeira na Terra Indígena Alto do Turiaçu. Enquanto jorra o sangue dos filhos da floresta, o lucro fácil dos madeireiros se apóia nas dificuldades do governo federal em controlar as invasões sem contrariar os interesses da política ficha-suja do País.

Um grupo de índios Ka’apor esteve em São Luís no último dia 27 de maio, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário – CIMI/MA, para denunciar junto à Procuradoria Geral da República e à Polícia Federal o aumento de invasões e o agravamento da violência dos madeireiros contra as comunidades da Terra Indígena Alto Turiaçu, incluindo assassinatos de lideranças.

O cacique Rerõe Ka’apor, da aldeia Axinguirená, relatou ao Vias de Fato que no dia 17 de maio procurava por seu parente Hubinet Ka’apor, de 38 anos, que havia ido ao Centro do Guilherme fazer compras, quando foi informado ter ele sido assassinado a pauladas nas imediações da cidade, um dia antes, por desconhecidos que estavam num bar junto a uma ponte, e depois jogado no rio.

Chegando ao local, o cacique encontrou o corpo enterrado de cabeça para baixo no leito do rio, tendo em seguida avisado a Polícia Militar, que recolheu a vítima e a conduziu ao necrotério do Centro do Aguiar. Rerõe levou o cadáver para a aldeia, após este ser liberado, mas não sabe informar se foi realizado exame de corpo de delito ou outro tipo de perícia. “Ninguém foi preso até agora, isso não é justo”, acrescentou.
A denúncia sobre o aumento da invasão madeireira e o assassinato do índio Hubinet Ka’apor já havia sido feita três dias antes ao Ministério Público Federal do Estado do Pará pelo cacique Valdemar Ka’apor, da aldeia Xiepihurená, tendo em vista a proximidade de Belém com a reserva indígena.

RAZÕES PARA MATAR

Segundo o cacique Valdemar, tradutor do grupo indígena, dias antes do crime houve uma discussão entre moradores da aldeia Axinguirená e o madeireiro conhecido por Zé Camburão, residente no povoado Cedral, que os ameaçou de morte, pois, no mês de abril, por duas vezes os índios haviam tomado armas e motosserras das mãos de empregados seus que retiravam ilegalmente madeira da reserva no mês de abril.

Para os índios Rerõe, Faustino Rossi e Itahu, que vieram a São Luís fazer a denúncia, acompanhados pelo cacique Valdemar, esta teria sido a verdadeira causa da morte do índio Hubinet Ka’apor. Eles esperam que as providências a serem tomadas pelos órgãos federais pelo menos diminuam o clima de violência que se alastrou nas áreas indígenas.

“Nós precisamos de justiça, por isso a gente fica se arriscando aqui e acolá. Se não tivesse órgãos de justiça, a gente mesmo poderia matar e morrer até o fim, mas como existe a justiça, viemos pedir proteção às autoridades”, resume Valdemar, e acrescenta que no território Ka’apor não podem contar com a FUNAI. “Não funciona e não ajuda em nada”, diz.

Cláudio Bombiere, missionário comboniano que desde 1981 trabalha com povos indígenas do Maranhão, acredita que Hubinet foi escolhido aleatoriamente para saciar o desejo de vingança dos moradores da cidade, pois há cerca de quatro anos um madeireiro, flagrado roubando madeira, tentou reagir violentamente com uma moto-serra, mas “a resposta dos índios foi imediata e fatal”.

Bombiere espera que a Polícia Federal instaure inquérito que leve à identificação e captura dos assassinos do jovem Hubinet Ka’apor. “As outras medidas que já deviam ter sido tomadas há muito tempo na região, consistem numa imediata e radical execução de políticas duras de fiscalização e intervenção para reprimir o tráfico de maconha e de comércio ilegal de madeira”, ressalta.

COMÉRCIO INDECENTE

A violência decorrente da extração ilegal de madeira há anos aterroriza o povo Ka’apor, mesmo com a demarcação da TI homologada em 1982 pelo Decreto nº 88.002, com uma área de 530.520 hectares. Desde fins de 80, cerca de um terço da área tem sido devastada por madeireiros, cedendo lugar a pastagens e povoados clandestinos, para onde aflui toda a sorte de gente, abalando a tranqüilidade das 12 aldeias, com cerca de 1.600 índios.

Em 1999, as matas da aldeia Xiepihurená começaram a ser sistematicamente invadidas por peões de sete serrarias (atualmente são 12) instaladas no entorno, situação que se prolongou até 2001. Pistoleiros chegaram a manter 60 índios prisioneiros durante vários dias, o que motivou ação conjunta do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, que ali manteve durante dois anos uma base para afastar os infratores.

Depois disso, a violência na região continuou, pois os grileiros parecem imunes às leis que garantem a integridade das reservas indígenas. Entre eles, o “fazendeiro” Antonio Chaves, dono da Fazenda Mercantil, que ocupa parte da Terra Indígena Alto Turiaçu e Awá-Guajá. Apesar de estar sendo processado judicialmente pelo Ministério Público Federal, Chaves insiste na devastação da reserva.

Em fevereiro de 2008, nova denúncia foi encaminhada ao MPF, em São Luís, registrando a entrada de madeireiros pelas fronteiras com os municípios de Maracaçumé, Centro do Guilherme, Santa Luzia do Paruá e Zé Doca, neste caso tendo como bases os povoados Ebenezer e Vitória da Conquista, incrustrado dentro da área Terra Indígena Awá-Guajá, homologada em 2005.

As invasões concentram-se nas aldeias Axiguirendá e Ximborendá – além dos povoados Maronata e Xapu, na área Guajá – e seus protagonistas comercializam à luz do dia, sem nenhum impedimento, madeiras nobres com as serrarias e fábricas de compensados vizinhas, como a Rio Concrem Industrial Ltda., com sede no município de Dom Eliseu, no Pará.

Na trilha da ilegalidade, ainda são citados pelos índios, geralmente pelo primeiro nome: Nelson, de Paragominas (PA); Luiz, de Capanema (PA); Geovane, de Buriticupu (MA); Alano, Conceição e Riba, do Centro do Guilherme; Ronaldo e seu irmão Lucivaldo, da localidade Limão, Raimundo Jafin, Maria Valê, Zé Riba e Valdir, da localidade Ebeneza, no município de Zé Doca (MA).

AS FACES DA POLÍCIA

O grande número de posseiros na TI Alto Turiaçu é outro drama vivido pelos índios, que acusam a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Maranhão (FETAEMA) de apoiar a devastação, visando beneficiar os moradores clandestinos. “Os prefeitos também estão do lado dos madeireiros, incentivando o capitalismo na região”, reforça a Irmã Ana Amélia Miranda, da coordenação do CIMI/MA.

Um dos acusados pelos Ka’apor é Josimar Cunha Rodrigues, prefeito do município de Maranhãozinho. Além de praticar crimes ambientais na sua própria cidade (derrubando árvores e ocupando espaços públicos), o prefeito incentiva a invasão da reserva com o propósito de cobrar pedágio dos madeireiros que saem de lá nos caminhões, ameaçando denunciá-los ao IBAMA e à Polícia Federal, caso se neguem a pagar.

Em outubro de 2009, no Centro do Guilherme, a PF fechou um garimpo existente nas terras Ka’apor, às margens do Rio Gurupi, numa operação conjunta com o IBAMA, FUNAI, Polícia Militar e Força Nacional. Oito pessoas foram presas, entre elas o vice-prefeito do município, Francisco Pedro Monroe, acusado de ser o responsável pela área.

Porém, nem sempre as policias agem como deveriam. Valdemar Ka’apor denuncia que, muitas vezes, as equipes da Polícia Federal enviadas para a região são cooptadas pelos fazendeiros, que lhes oferecem dinheiro, bebidas e mandam matar cutia, bode, carneiro e outros animais para fazer churrasco. Um deles é Evandro Neudi, “fazendeiro pesado” de Paragominas.

“Enquanto a polícia dorme, os madeireiros entram e saem durante a noite levando a madeira que ficou escondida na mata. Não entendo como isso pode funcionar. Eles ganham diária, salário, e o fazendeiro ainda desperdiça o nosso dinheiro com festa, o dinheiro que ganham com o roubo de madeira”, desabafa o cacique.

No rastro dos madeireiros também são atraídos para a Terra Indígena uma infinidade de cipoeiros, plantadores de maconha e caçadores. Valdemar Ka’apor se refere ainda ao tráfico de plantas medicinais, aves e outros animais silvestres, como japeçocas, mutuns, jacus, papagaios, cutias, macacos, antas etc., não existindo critério para os caçadores.

“Os índios sabem respeitar a floresta. Hoje a gente come um tatu, depois de amanhã um jaboti, para que cada espécie possa procriar. Peões e caçadores não são assim. Eles prendem uma família inteira de cutia ou de outro animal para vender. Quando eles comem algum bicho, jogam a cabeça fora. Nós não, nós aproveitamos tudo”, diz o cacique.

Para os índios Ka’apor, o desperdício promovido pela derrubada irrefreável de árvores nativas, o tráfico de animais e de outros bens arrancados à força da floresta é, seguramente, como um atestado de óbito antecipado da Terra Indígena Alto Turiaçu, assinado pelas mesmas mãos sujas de sangue que tripudiam da lei e dão tapinhas nos ombros dos banqueiros.

“A essa hora já estão mexendo na minha casa!”, ironiza Valdemar Ka’apor no final da conversa.

SILÊNCIO, POR UMA BOA CAUSA

O Procurador Geral da República no Maranhão, Alexandre Silva Soares, tem recomendado ao IBAMA prioridade em casos envolvendo crimes ambientas e a integridade dos povos indígenas, e informa que ações concretas estão em andamento nas terras Araribóia, Caru, Awá-Guajá e Alto Turiaçu. Mas admite haver limitações orgânicas nas medidas adotadas pelos órgãos federais. “Nem sempre os resultado são aqueles que esperamos”, comenta.

Com relação ao homicídio de índios, lamenta as dificuldades na apuração desses casos, quando as polícias locais não tomam as providências devidas, pois a Polícia Federal só chega alguns dias depois nas áreas afetadas, muitas delas de difícil acesso. No caso do assassinato de Hubinet Ka’apor, propôs a instauração de um inquérito policial federal e uma ação conjunta dentro da área. Mas pede sigilo sobre o assunto, para não prejudicar as investigações.

Depois de ter passado por estágios e experiências profissionais em ONG’s de direitos humanos, o Procurador Alexandre, não nega esforços no que se refere à sua pasta. Mas torna-se precavido diante da aproximação da imprensa, e afirma que às vezes é necessário ter cautela quanto à divulgação do teor de documentos e providências a serem tomadas antes da conclusão dos inquéritos.

“A imprensa costuma desvirtuar informações, criminalizando os índios e quase sempre se colocando de forma contrária aos seus interesses”, diz o Procurador, sem especificar os atores dessas práticas, talvez por achar desnecessário. Mas se sabe que na outra ponta existe uma luta incessante pelo direito e pela ética da informação, a exemplo do jornal Porantim, que há mais de 30 anos atua em defesa das causas indígenas.

Promovida pelas grandes redes de comunicação, a demonização dos povos indígenas está ligada aos interesses políticos e econômicos de privatização da Amazônia, ao monopólio de terras, ao agronegócio e à comercialização de madeira, celulose, minérios e carne bovina, com o aval dos ruralistas especuladores que lotam o Congresso Nacional, entre outros fichas-sujas existentes no País. (CT)

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