A dignidade da pessoa humana em "Vidas secas", de Graciliano Ramos
Elaborado em 10/2009.
Marco Túlio Fernandes Ibraim
Advogado e Professor de Direito Tributário nas Faculdades Pedro Leopoldo. Mestrando em Direito Tributário pela UFMG.
Sumário: 1. Introdução – 2. Direito e literatura: interações possíveis – 3. A trama de Vidas Secas – 4. A animalização do homem em Vidas Secas – 5. A animalização do homem e a dignidade da pessoa humana – 6. Conclusão – Referências bibliográficas.
Resumo: Partindo das possíveis interfaces entre Direito e Literatura, o presente artigo analisa de que maneira os dois campos se interagem na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, considerando-se, para tanto, a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Direito, Literatura, Interação, Vidas Secas, Graciliano Ramos, Dignidade da pessoa humana.
1. Introdução
A percepção da complexidade de nosso tempo, (seja ele a modernidade, como querem alguns [01], ou a pós-modernidade, que tem sido defendida por muitos outros [02]), conduziu a uma nova forma de encarar o estudo científico. Este, hodiernamente, tem sido pautado, com elevada freqüência, pela transciplinariedade e interdisciplinaridade, dada a constatação de que, mesmos as ciências mais distantes e incompatíveis entre si (ao menos a uma primeira e apressada vista), possuem complexas e fortes interações.
E não tem sido diferente na seara do Direito. Embora existam aqueles que considerem que as relações entre Direito e Literatura – das várias maneiras que esta pode se dar, conforme se verá adiante – não representam a concretização de estudos transdisciplinares ou interdisciplinares, fato é que essa interface vai ao encontro da nova tendência há pouco referida, de enfrentar questões já elementares em determinados campos de conhecimento sob perspectivas de outros, sempre com o intuito de obter novas e instigantes conclusões.
E é neste contexto que se insere o presente estudo. Pretende-se, com ele, mediante a prévia análise das possíveis relações entre Direito e Literatura, bem como do enredo de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, estabelecer uma interface entre a obra e a dignidade da pessoa humana, daí extraindo uma nova maneira de enxergar a matéria.
2. Direito e literatura: interações possíveis
Bem observa Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, em percuciente e profícuo estudo sobre o tema, intitulado "Direito e literatura. Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller [03].", que a aproximação entre Direito e Literatura é bastante corrente na cultura ocidental. Segundo esse autor, em tempos mais antigos, a relação era, inclusive, mais simplória, é dizer, menos problemática, eis que, corriqueiramente, os homens das leis também eram homens das letras, sendo o romano Marco Túlio Cícero, "(...) o exemplo mais emblemático."
O autor destaca, no citado trabalho, que, a despeito das inúmeras relações entre Direito e Literatura destacadas pelos estudiosos da matéria, três tipos de interações principais sintetizariam todas as já identificadas: (i) direito na literatura, (ii) direito como literatura e (iii) literatura como veículo do direito. Partindo-se, pois, dos escritos desse autor, exporemos e elucidaremos cada uma dessas três relações. Apenas brevemente, todavia, dado que não pretendemos tratar especificamente desse assunto, mas sim somente introduzi-lo para permitir ao leitor uma compreensão mais completa e proveitosa da relação que ora se pretende fazer (entre a obra Vidas Secas e a dignidade da pessoa humana).
Pois bem. Iniciemos pela interação "direito na literatura", identificada, principalmente, por John Henry Wigmore. Segundo este estudioso americano – conhecido entre os seus compatriotas pelos trabalhos desenvolvidos com as provas em direito (evidences) – a literatura, quando tem por objeto o direito, cumpre importante função instrumental e pedagógica, na medida em que auxilia num aprendizado mais satisfatório deste último. Segundo esse autor, a leitura de determinados clássicos, que seriam obtidos a partir de uma seleção criteriosa de um especialista, seria imprescindível à formação completa do bacharel em direito, que, por meio dessas fontes, conheceria melhor a história de sua profissão (e dos respectivos expoentes) e, igualmente, os diferentes sistemas jurídicos vigentes no mundo. O jurista, por assim dizer, letrado, dominaria de maneira mais consistente as especificidades do seu ofício [04].
Já o "direito como literatura", ou, a "literatura no direito", seria a relação que aponta para um direito mais belo e eficaz, o que seria alcançado por meio de uma redação mais polida. Especialmente trabalhada por Benjamin Nathan Cardozo, jurista americano que ocupou uma vaga na Suprema Corte desse país, segundo nos lembra Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, essa interação teria por finalidade tornar o texto jurídico mais eficiente naquilo que se propusesse, o que somente seria atingido por intermédio de uma escrita clara, coerente, coesa e esteticamente trabalhada. Conforme se extrai do aludido artigo de Godoy, "(...) para Cardozo, a forma não se adere à substância como mero adereço; forma e substância fundem-se, formam unidade única. (...) O estilo, enfim, não seria o bicho-papão de uma decisão judicial. Faria parte dela mesma; é ela." [05]. A literatura no direito, assim, não teria outra função senão a de torná-lo melhor.
Finalmente, a terceira relação entre direito e literatura dar-se-ia na utilização desta como veículo daquele. Essa interação foi principalmente identificada por Lon Fuller, autor, também estadunidense, que é assaz conhecido entre nós em virtude de uma das suas obras mais relevantes, de leitura quase que obrigatória por aqueles que iniciam seus estudos no direito em nosso país: "O caso dos exploradores de cavernas" (The case of the speluncean explorers). Nesse caso, a literatura assumiria o mesmo papel de um texto legislativo, de um ato jurídico praticado por uma autoridade, ou de uma obra doutrinária jurídica: o de dizer o direito. Aqui, o texto literário não teria a simples (mas não desimportante, saliente-se) função instrumental de ensinar o direito, conforme visto acima. A escrita literária, na presente hipótese, refletiria algo mais, mais abrangente, seria o próprio direito. Ao entendimento dessa interação, basta se pensar no enredo do romance que supra referido, "O caso dos exploradores de cavernas". A partir da estória nele desenrolada, fica clara a necessidade de uma moralidade interna da lei, que seria, segundo Fuller, o conector desta, a lei, "(...) com a moral social e com a realidade complexa que dá condições à experiência do direito." [06]
São estas, pois, em linhas generalíssimas, os principais aspectos dessas três abordagens da relação entre direito e literatura. Traçados os seus contornos, passemos à análise de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para que possamos, em seguida, analisarmos de que forma a obra se relaciona com o direito.
3. A trama de Vidas Secas
Em meio aos vários clássicos da literatura brasileira de autoria de Graciliano Ramos, entre os quais podemos citar Angústia, São Bernardo, Caetés e Memórias de Cárcere, Vidas Secas, de 1938, pode ser tido como a sua principal obra, segundo a opinião da crítica literária especializada. Tal fato reside, possivelmente, nas suas notáveis qualidades estilísticas e semânticas, na notoriedade que alcançou e, sobretudo, na atualidade que ainda possui.
Vidas Secas retrata, de maneira direta, concisa e, e às vezes, bruta e sem qualquer floreio (em alusão à própria seca, à qual essas características podem ser creditadas), a saga de uma família de retirantes nordestinos, atingidos pela seca, que vaga pelo sertão brasileiro em busca de melhores condições de vida. Por meio de uma narrativa simplória, problematiza questões cuja atualidade impressiona (lembrando que a obra é da década de 30): o êxodo rural, a injustiça e a marginalização social, a opressão, exploração e o embrutecimento do sertanejo, o autoritarismo do poder etc.
A trama se inicia com a caminhada da família de sertanejos, Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos, acompanhados pela cachorra Baleia e o papagaio de estimação, que atravessam a caatinga, fugindo da seca, à procura de um novo lugar para morar. Embora estejam vagando sem destino certo, desalentados pela fome, sede e pelo cansaço, a família, neste momento do livro, após ser surpreendida com o abatimento de um preá pela cachorra Baleia, que logo se transforma em comida, passa a alimentar um sentimento de esperança. Esperança de que a chuva venha e Fabiano sonha o renascimento da fazenda: "Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Bem. A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta." [07] A estória tem início, portanto, com o também começo de uma caminhada, que é, na origem, permeada por esperança.
Esse nobre (e muitas vezes desarrazoado) sentimento não perdura por muito tempo, no entanto. Pouco tempo depois de começar a trabalhar como capataz para um fazendeiro (o patrão), Fabiano, após perder dinheiro em um jogo de cartas com o Soldado Amarelo, acaba preso, maltratado e humilhado. Sente-se injustiçado e atribui sua prisão à sua condição de homem rústico: "Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?Que mal fazia a brutalidade dele?" [08] Nesta passagem, Graciliano Ramos retrata a natureza bronca do sertanejo, que dá origem a sua incapacidade de se comunicar, como causa da sua também impossibilidade de lutar pelos seus direitos.
A esperança, todavia, não é esquecida a partir daí. Em alguns outros momentos do enredo, ela é ressuscitada. Não de forma justificada, apoiada em algum fato concreto que evidencie a sua viabilidade. Mas sim de maneira desmotivada, inexplicável e irracional, quase que como uma verdadeira para ver sentido em continuar vivendo. Tal ocorre com sinhá Vitória, que, incomodada por ainda ter que dormir numa cama de varas, ao escutar o ronco, ao seu sentir, seguro de Fabiano, acredita em os tempos vindouros melhores e mais estáveis e que a seca estava finalmente longe. A esperança igualmente está na admiração nutrida pelo menino mais novo em relação ao pai, bem assim na sua vontade de se tornar um grande vaqueiro, do qual todos iriam se orgulhar. Ou, ainda, na constatação de que o filho mais velho de Fabiano era um menino esperto e curioso, o que lhe poderia trazer um futuro mais justo.
É interessante notar, contudo, que em que pese ditas ocasiões de injustificada esperança, noutras, mesmo podendo realmente significa-la, não eram assim considerados. Com a chegada do inverno e, juntamente a ele, das chuvas, sinha Vitória, ainda assim preocupava-se. Não com a seca, dessa vez, e sim com a possibilidade de enchentes. A personagem estava tão acostumada a sofrer que, quando as coisas pareciam melhorar, já passavam a esperar o pior.
Mas o que predomina, de fato, são os momentos de grande tristeza, desolação e desesperança. São vários e de diversas naturezas. É pesaroso assistir a estranheza experimentada pela família de Fabiano ao passar o natal na cidade. As roupas que vestiam (as suas melhores), o ambiente da cidade, a grande multidão, os incutiu desconforto, sensação de ridículo, enfim, sentimento de não pertencimento, verdadeira exclusão. É também imensamente melancólico o capítulo em que a morte da cachorra Baleia é descrita. A par de literariamente bela, a narrativa nele desenrolada desenha cena forte, de elevada intensidade, em que a dor do momento é exposta de maneira extremamente real, suficiente a deixar o leitor efetivamente sensibilizado. "Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes." [09] Ainda de grande desalento é o trecho no qual Fabiano busca receber o pagamento por seus serviços e termina por perceber quantia bem inferior ao que julgava ter direito, ao argumento de desconto de juros. Nessa ocasião, vê-se, além de a prática de uma clara injustiça, verdadeiro determinismo incorporado por Fabiano. Sentiu-se humilhado, oprimido e explorado, mas sabia que não podia mudar sua sina: o seu destino e de sua família era trabalhar para os outros.
De se observar, também, que, mesmo imerso em tanta desgraça, Fabiano ainda agia com certa integridade em alguns momentos. No seu reencontro com o Soldado Amarelo, por exemplo, o sertanejo expulsa de si os sentimentos de vingança, ponderando que esses não valiam à pena, pois não o levariam a lugar nenhum e ele era um homem de bem. E a nobreza dos seus atos, nessa ocasião, não pára por ai: além de deixar a autoridade ir embora, Fabiano ensina-lhe o caminho de volta.
Nesse ponto, a narrativa já encontra no fim. Indícios da chegada próxima da estação seca começam a ser verificados. A vinda das aves em arribação, verdadeiramente roubando a alimento originalmente destinado ao gado, é citada como exemplo dessa aproximação. E não demora para que os retirantes sejam novamente atingidos pela seca, o que leva Fabiano a encabeçar uma nova caminhada pelo sertão. Ele e a família deixam a fazenda de madrugada, pois já não podiam mais liquidar a dívida acumulada com o patrão. Fabiano, na realidade, não desejava partir, mas a necessidade não lhe deu escolhas. Durante a retirada, contudo, novamente se percebe a esperança ressurgindo da tristeza: marido e mulher conversam tentando animar um ao outro. Trocam elogios, ressaltando a força de cada um agüentar a longa caminhada, e alimentam o sonho de um futuro melhor longe da seca:
E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois, velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada. Ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos. [10]
A estória termina, assim, da mesma maneira em que começou: com Fabiano e sua família (sem os animais, agora) em busca de um lugar não atingido pela seca. O enredo de Vidas Secas é, pois, cíclico, em clara e sábia alusão à estação seca.
4. A animalização do homem em Vidas Secas
Embora não se trate de temática inédita, a análise da "animalização do homem" [11] em Vidas Secas não se encontra, a nosso ver, inteiramente esgotada, mormente se considerarmos as suas possíveis relações com o Direito. Nesse sentido, o exame dessa questão em face da dignidade da pessoa humana, o qual pretendemos concretizar, pode conduzir-nos a conclusões e interações ainda não pensadas, hábeis, por isso, a demonstrar a riqueza dos escritos sob enfoque.
Mas o que seria essa animalização do homem, tema tão correntemente atribuído à obra em referência? Do seu significado, constante dos dicionários da língua portuguesa, já se pode ter uma boa idéia do sentido pelo qual o vocábulo vem sendo utilizado. Do tradicional Aurélio, vê-se que o verbo é sinônimo de
tornar bruto, embrutecer, bestializar. Da Encyclopedia e Diccionario Internacional, de W.M. Jackson (Inc. Editores, Rio de Janeiro), citada por Rogério Lacaz-Ruiz [12], em artigo específico sobre o tema, o verbete animalisar (sic) possui a acepção de "Reduzir aos instintos, aos apetites, aos gostos do animal." De se dizer, dessa forma, que o homem animalizado é aquele que age instintivamente apenas, ou, coloquialmente, "de impulso", sem qualquer racionalização sobre os seus atos. A animalização é, pois, o embrutecimento, é o retorno à condição de animal.
Em Vidas Secas, são vários os exemplos dessa verdadeira bestialização do ser humano. De início, basta rememorar que durante toda a narrativa, são pouquíssimos os diálogos entre os integrantes da família. Ao invés de conversas, a comunicação entre eles era efetivada, sobretudo, por meio de gestos e sons guturais. No capítulo primeiro, é bastante ilustrativa a seguinte passagem, vivenciada por sinha Vitória: "sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com sons guturais que estavam perto" [13]. Mais a frente, ainda no primeiro capítulo, outro bom exemplo pode ser retirado:
Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixa de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. [14]
Aqui, a sutiliza da crítica do autor alagoano chega a ser genial: o papagaio da família somente imitava os latidos da cachorra Baleia, pois esse era o único som regularmente ouvido na casa; a comunicação, como já se disse, era extremamente escassa entre Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.
Noutro momento do livro, também "protagonizado" por sinha Vitória, a animalização ainda é mais descarada. Nessa ocasião, a personagem, com o intuito de se alimentar, lambe o sangue de preá que ficara retido no focinho da cachorra Baleia, após o abatimento, por esta, do roedor: "Levantaram-se todos gritando, o menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sono. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo." [15] A redução aos instintos, da qual se fez referência acima, é bastante evidenciada nesse caso.
Mas é com Fabiano, o protagonista de Vidas Secas, que a bestialização ressai mais explícita. No capítulo segundo, como visto, a própria personagem se caracteriza como um animal: "Você é bicho, Fabiano. Isso para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades" [16]. Já noutros trechos, ele é equiparado a animais: "O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco" [17]. Ainda: "Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia..." [18], e "Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos" [19].
Em contraste, mas como mais uma nítida evidência da animalização do homem, a cadela Baleia é claramente humanizada durante algumas passagens: "Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhava-se à dela [20]" e "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam..." [21] "Defronte do carro de bois, faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo [22]" Ao retratar Baleia como um membro da família de retirantes, dotada, diversamente dos demais, de uma série de atitudes humanas (como a demonstração de opinião e o andar com apenas duas pernas), Graciliano somente reforça essa animalização do homem, eis que coloca, em um mesmo nível, o animal de estimação da família e a própria família. A humanização de Baleia não representa, assim, uma assunção de consciência por sua parte ou uma elevação da sua condição animal. Significa, lado outro, que ela estava no mesmo nível de seus "donos", verdadeiros animais em Vidas Secas.
Que os familiares de Fabiano, e ele próprio, são bestializados, reduzidos aos seus instintos, na obra de Graciliano, entende-se, neste momento, já se tratar de uma clara evidência. A análise da animalização não se completa, todavia, se não se perquiri por sua razão. O que, afinal, isso quer significar? O que o autor pretendeu dizer ao fazer tal crítica? A intenção, a nosso ver, foi, por intermédio de uma exposição escancarada da conseqüência (a animalização), lançar luzes sobre a respectiva causa (a forte exclusão social desse povo), realizando uma dura e inteligente crítica social. A "animalização do homem" em Vidas Secas não é outra coisa senão fruto da intensa exclusão social vivenciada pelos retirantes nordestinos nela retratados (na obra).
Colocados em condições tão extremas de vida, Fabiano e sua família precisam, antes de qualquer outra coisa, preocupar-se em sobreviver. Simplesmente existir, antes de qualquer outra coisa. Como tal, ante a realidade por eles vivenciada, era tarefa extremamente difícil, a atenção a atitudes próprias do ser humano, como o planejar o futuro, o interagir com os demais homens, o gostar/amar alguém, o constituir família, o pensar sobre qual é profissão que lhe completa, o defender uma ideologia e o próprio o refletir sobre sua posição na sociedade ficam relegadas a um segundo plano (para não dizer a um terceiro, dado o elevado distanciamento), muito atrás do sobreviver. De fato, não há como agir racionalmente – que é o que diferencia o homem dos demais animais – se não se tem, antes, condições mínimas de subsistência. O homem precisa, anteriormente a qualquer outra coisa, atender as suas necessidades fisiológicas. Manter-se de pé, figurativamente. Por mais que se difira dos demais animais, uma vez que é racional, o homem é um ser vivo como todos os outros e, nessa condição, não prescinde do atendimento a determinadas necessidades para subsistir. Se não as observa, o homem fica estancado ali, na condição de mero animal, agindo instintivamente em busca de meios para sobreviver. O homem socialmente excluído, assim, que não tem o mínimo para sobreviver (leia-se comida e água), não consegue sair da condição de animal. E é por isso que se pode dizer que o homem só pode ser homem (no sentido antropológico e social da palavra) se ele não tem problemas sendo um animal (ou seja, atende às necessidades físicas de sobrevivência).
Aqui reside a principal crítica de Graciliano. Por meio dessa "animalização do homem" o autor demonstra como é extrema a exclusão social dos retirantes. Não se trata, apenas, da classe excluída, à margem, que não detém, temporariamente, ingerência sobre os rumos da comunidade/sociedade da qual é parte integrante. Tampouco de uma simplesmente menos favorecida, que não tem acesso a alguns serviços públicos, mas que, ainda assim, possui condições de viver. Trata-se de um povo que não tem sequer como manter-se de pé, eis que sequer possuem o que comer. E não tendo o que comer, eles não podem fazer mais nada, inclusive, agir como homens que são. Não podem, assim, lutar para sair dessa condição, brigar pelos seus direitos, questionar a sua posição e toda a estrutura na qual estão inseridos [23]. A exclusão é tamanha, quando o homem é animalizado, que ele não tem quaisquer meios para tentar sair dessa condição. É essa, pois, a crítica mais veemente em Vidas Secas: se ao homem não são dadas condições mínimas de subsistência ele sequer pode agir como homem; fica relegado à condição de animal.
5. A animalização do homem e a dignidade da pessoa humana
Ante as considerações realizadas na seção anterior, outra relação, entre Literatura e Direito, não seria mais oportuna em Vidas Secas que aquela existente entre a "animalização do homem" e a dignidade da pessoa humana. Seja como for tomada, como direito fundamental e/ou humano, princípio ou valor fundante/estruturante do sistema jurídico, trata-se de mandamento jurídico de extrema relevância, senão o mais importante. Conforme observa a doutrina especializada, a exemplo do Min. Gilmar Ferreira Mendes [24], a dignidade da pessoa humana está presente nos mais diversos textos jurídicos ocidentais, principalmente naqueles de status constitucional, geralmente nos seus preâmbulos. No Brasil, encontra-se prevista logo no art. 1º da sua Constituição, como próprio fundamento do Estado que acabara de surgir.
Para muitos [25], entre estudiosos e aplicadores do direito, cuida-se de direito/princípio/valor [26] bastante criticável, eis que, de tão absoluto e geral (como é costumeiramente qualificado), por vezes acaba desprovido de qualquer conteúdo, principalmente quando levado a uma situação concreta – o que coloca em cheque a sua própria efetividade (considerado como norma jurídica). Mas é provavelmente em razão disso, como nota o acima mencionado autor, que se tem feito um tão grande esforço, tanto em terras brasileiras, quanto internacionais, em fazer aplicável a o preceito que traz inserto em seu bojo (a dignidade da pessoa humana).
Mas o que é esse verdadeiro fundamento da República Federativa do Brasil? Em termos melhores: o que diz esse direito/princípio/valor? Que garantias traz? Em poucas palavras, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana, peça estruturante do sistema jurídico brasileiro, é que concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Afasta, ademais, a prevalência de concepções transpersonalistas de Estado sobre as liberdades individuais [27]. Segundo Alexandre de Moraes, que nos oferece conceituação bastante completa:
[...] é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menos prezar a necessária estima que merecem todas as pessoas quanto seres humanos [...] [28].
É, em suma, direito, princípio ou valor pelo (s) qual (is) é assegurada, a toda pessoa humana, a possibilidade de sê-la em toda sua plenitude. Respeitar a dignidade da pessoa humana é, pois, respeitar a natureza do homem, com suas necessidades, questionamentos, angústias e anseios, sem impor quaisquer limitações injustificadas.
Dessas considerações, percebe-se, com nitidez, o imenso valor jurídico da obra em questão: Vidas Secas traz, consigo, por meio da descrição da interação do retirante nordestino com outros integrantes da Sociedade e com a terra, em tempos de extrema seca, uma clara e lúcida definição da dignidade da pessoa humana. E o faz por meio da demonstração do seu malferimento, da sua completa violação: expõe-na na total ausência de dignidade (no sentido ora trabalhado) de que padecem Fabiano e sua família, que não têm, como já se viu, as suas características de seres humanos respeitadas, sendo transformados em verdadeiros animais, embrutecidos, bestializados. Pode-se dizer, inclusive, que, na exemplificação que promove, Vidas Secas possibilita uma compreensão mais clara da dignidade da pessoa humana do que qualquer conceituação abstrata (própria, vezes da norma jurídica, outras muitas vezes da doutrina especializada), poderia oferecer. Fá-lo, pois demonstra o que é a ausência de dignidade humana, que, de tão grave, violenta e intensa, evidencia, de forma muito mais nítida, o seu real significado. Essa obra de Graciliano Ramos funciona, assim, como verdadeiro veículo do direito, eis que, além de permitir a sua melhor apreensão, ajuda a desenvolvê-lo, passando a integrá-lo.
6. Conclusão
Quis-se, com este estudo, evidenciar como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, com o retrato (também) seco que faz da rotina dos retirantes nordestinos, verdadeiramente animalizados pelas suas condições assaz precárias de vida, assume o real papel de veículo do direito, contribuindo para uma melhor compreensão do significado da dignidade da pessoa humana e, dessa forma, pela sua mais satisfatória efetivação.
Referências Bibliográficas
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e literatura. Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9995, em 10 de julho de 2009.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
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MENDES, Gilmar Ferreira., COELHO, Inocêncio Mártires., BRANCO, Paulo Gustavo Gonet., Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 87ª ed. Rio, São Paulo: Record, 2002.
Notas
1. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um dos principais popularizadores do termo Pós-Modernidade no sentido de forma póstuma da modernidade, atualmente prefere usar a expressão "modernidade líquida".
2.
3. Adotam-na, por exemplo, o francês Jean-François Lyotard, ao tratar da "condição pós-moderna", como o fimdas narrativas, e o crítico marxista norte-americano Frederic Jamenson, que a encara como a "lógica cultural do capitalismo tardio".
4. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e literatura. Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Jus Navigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9995, em 10 de julho de 2009, p. 01.
5. Ibid. p. 02.
6. Ibid. p. 02.
7. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Op. cit. p. 01. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 87ª ed. Rio, São Paulo: Record, 2002, p. 15.
8.
9. Ibid, p. 36.
10. Ibid. p. 90. RAMOS, Graciliano. Op. cit. p. 126.
11. Sendo o "homem", aqui, tratado no sentido de "ser humano".
12. LACAZ-RUIZ. Rogério. Animalização do Homem: uma visão ontológica do Ser Individual e do Ser Social. Disponível em:
13. http://www.hottopos.com.br/vidlib2/animaliza%E7%E3o_do_homem.htm, acesso em 10 de julho de 2009.
14. RAMOS, Graciliano. Op. cit. p. 10.
15. RAMOS, Graciliano. Op. cit p. 11.
16. . Ibid. p. 13-14.
17. Ibid. p. 18.
18. Ibid., p. 51.
19. Ibid., p. 22.
20. Ibid., p. 23.
21. Ibid., p. 83.
22. Ibid., p. 85.
23. Ibid., p. 88.
24. O apenas excluída e o simplesmente menos favorecida não podem ser, aqui, mal-compreendidos. Não se está a dizer que tais condições de vida são aceitáveis, que são situações sociais que fazem parte da realidade e que, por isso, que não devem ser combatidas, mas meramente admitidas conformadamente. Ao se colocar essas questões de tal modo, objetiva-se enfatizar quão grande e extrema é a exclusão vivenciada pelos retirantes retratados em Vidas Secas. MENDES, Gilmar Ferreira., COELHO, Inocêncio Mártires., BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
25. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
26. Não se quer, aqui, discutir a natureza da dignidade humana, tema por demais técnico aos desígnios desse estudo.
27. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004. p. 152.
28. Ibid. p. 183.
IBRAIM, Marco Túlio Fernandes. A dignidade da pessoa humana em "Vidas secas", de Graciliano Ramos. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2590, 4 ago. 2010. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/17109.