quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Limitar terras é distribuir riquezas

Limitar terras é distribuir riquezas
O plebiscito popular deve evidenciar a altíssima concentração fundiária no Brasil, aponta o advogado Fernando Prioste. Limitar a propriedade e cumprir a função social da terra promoverá a distribuição de renda

Por: Márcia Junges

“Se a terra é meio de produção da riqueza, então a concentração da propriedade desta acarreta na concentração da riqueza e consequente desigualdade social”, reflete o advogado Fernando Gallardo Vieira Prioste, assessor jurídico da Terra de Direitos, Organização de Direitos Humanos sediada em Curitiba, no Paraná. Nesse sentido, o plebiscito do limite da propriedade da terra, a ser realizado na primeira semana de setembro, “tem a especial função de evidenciar a altíssima concentração fundiária no Brasil”. E continua: “De fato, ao se instituir um limite à propriedade da terra, estaremos caminhando rumo à distribuição das parcelas de terras que serão libertadas da maxi-exploração do latifúndio monocultor. Desse modo, realiza-se a reforma agrária, distribuindo a terra para que os trabalhadores rurais produzam no modo de agricultura familiar”. É importante lembrar, ressalta Prioste, que o Brasil é o segundo país com maior concentração de terras no mundo, sendo que 44% das terras disponíveis para agricultura e pecuária são propriedade de apenas 1% do total de proprietários, em extensões superiores a mil hectares. Fica demonstrado que a concentração de terras, “fenômeno histórico no Brasil, é um dos principais elementos de manutenção da brutal e inadmissível desigualdade social no país”. Em sua opinião, conjugar “o limite da propriedade da terra com o efetivo cumprimento de sua função social, entre outros elementos, aporta instrumentos fundamentais para que se concretize a efetiva distribuição das riquezas do país”. A titulação e demarcação de terras quilombolas e indígenas não serão afetadas negativamente pela limitação da propriedade, já que são de naturaza coletiva e promovem a desconcentração fundiária e distribuição justa. As declarações foram feitas à IHU On-Line, por e-mail.

Prioste é graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) com a monografia A Irredutibilidade e a Correção do Valor Real dos Benefícios Previdenciários do Regime Geral da Previdência Social à Luz da Constituição. Com Thiago Hoshino publicou o livro Empresas Transnacionais no Banco dos Réus: Violações de Direitos Humanos e Possibilidades de Responsabilização (Curitiba: Terra de Direitos, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que aspectos o plebiscito do limite da propriedade da terra representa um avanço em direção à Reforma Agrária? Por quê?
Fernando Gallardo Vieira Prioste – O plebiscito do limite da propriedade da terra tem a especial função de evidenciar a altíssima concentração fundiária no Brasil, chamando a atenção da sociedade para os problemas enfrentados pelo país em razão da concentração de terras. A questão é que, se a terra é meio de produção da riqueza, então a concentração da propriedade da terra acarreta na concentração da riqueza e consequente desigualdade social. A reflexão sobre a necessidade de implementação de limites para a propriedade da terra também exige um esforço no sentido de se repensar a forma de distribuição dessas terras. Nesse contexto, a reforma agrária pode ser entendida como um instrumento essencial e urgente de democratização do acesso à terra. De fato, ao se instituir um limite à propriedade da terra, estaremos caminhando rumo à distribuição das parcelas de terras que serão libertadas da maxi-exploração do latifúndio monocultor. Desse modo, realiza-se a reforma agrária, distribuindo a terra para que os trabalhadores rurais produzam no modo de agricultura familiar. Assim, distribuir a terra significa, diretamente, distribuir a riqueza, e erradicar a pobreza e desigualdade social, o que é objetivo fundamental da República, e consta do art. 3º da Constituição Cidadã.

IHU On-Line – Se o Brasil aprovar o limite da propriedade da terra, quais seriam os primeiros impactos dessa ação?

Fernando Gallardo Vieira Prioste – Um dos principais objetivos da implementação deste tipo de medida no Brasil, assim como da realização da reforma agrária, seria alcançar a equidade socioespacial por meio da desconcentração fundiária. Nosso país é o segundo onde há maior concentração de terras no mundo, perdendo apenas para o Paraguai, onde, aliás, muitos brasileiros são proprietários.
É importante destacar que 44% das terras disponíveis para agricultura e pecuária no Brasil estão nas mãos de apenas 1% do total de proprietários, cujas áreas têm extensão superior a 1000 hectares. De outro lado, 48 % do total de proprietários de terras são pequenos agricultores, com propriedades de até 10 hectares, os quais são responsáveis pela produção de aproximadamente 50% dos alimentos no Brasil, o que fazem utilizando apenas 2,36% do total das terras disponíveis.

Fenômeno histórico

A concentração da terra, fenômeno histórico no Brasil, é um dos principais elementos de manutenção da brutal e inadmissível desigualdade social no país. Historicamente, desde a época das capitanias hereditárias, passando pela lei de terras de 1850, o Estado brasileiro agiu no sentido de incentivar a concentração de propriedades rurais, excluindo a maior parte do povo da possibilidade de acesso a elas, o que intensifica a miséria. A Constituição Federal de 1988 reconheceu essa questão ao eleger a reforma agrária como política pública central para a erradicação da pobreza e para a concretização da função social da terra.
Igualmente, é preciso destacar a relevância destas políticas para a efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, para que não se desvirtue a Carta Maior em mera “folha de papel” que se pode rasgar ao sabor de interesses particulares. Assim, a conjugação do limite da propriedade da terra com o efetivo cumprimento de sua função social, entre outros elementos, aporta instrumentos fundamentais para que se concretize a efetiva distribuição das riquezas do país.
IHU On-Line – Como ficará a situação de povos tradicionais como os quilombolas e indígenas caso ocorra a limitação da propriedade em nosso país?

Fernando Gallardo Vieira Prioste – A titulação de territórios quilombolas e a demarcação de terras indígenas não serão afetadas negativamente pela implementação do limite da propriedade privada da terra no Brasil.
As terras indígenas demarcadas são de propriedade da União com usufruto e posse exclusiva dos povos indígenas. Como as terras estão registradas em nome de ente público, a limitação não se impõe nesses casos.
As terras ou territórios quilombolas, quando titulados, são registrados em nome da associação da comunidade, um ente privado. Contudo, a limitação da propriedade privada da terra não se aplica a essas situações. A Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT determinam que as titulações devem satisfazer as necessidades de reprodução física, cultural e econômica dos quilombolas. Nos diversos estudos realizados pelos órgãos públicos responsáveis pela titulação, são levadas em conta todas essas necessidades, aí incluída a posse tradicional, para delimitar o território.
Assim, limitar o acesso à terra para os quilombolas, sem levar em conta suas necessidades, seria uma violação à Constituição e às convenções internacionais de direitos humanos. Esse mesmo raciocínio se aplica também às questões indígenas. Vale ressaltar que o limite da propriedade tem como referência a necessidade de desconcentração da propriedade privada individual da terra. As titulações dos territórios quilombolas e demarcação de terras indígenas também são, por natureza, coletivas, e incrementam a desconcentração fundiária e a distribuição justa da terra no Brasil.

IHU On-Line – Haverá limite para que estrangeiros adquiram terras no Brasil? Qual é a situação desse assunto hoje?

Fernando Gallardo Vieira Prioste – A lei 5709/71 já impõe um limite de propriedade de terras para estrangeiros no Brasil, tanto para pessoas físicas, como para empresas. Segundo essa lei a aquisição de terras por pessoas físicas não pode superar 50 módulos fiscais em áreas contínuas ou descontínuas. Além das restrições relativas à quantidade de terras que podem ser adquiridas por estrangeiros, essa lei também elenca outras restrições: a) que o estrangeiro tenha autorização do estado brasileiro para fazer a compra se a terra estiver, por exemplo, em área de fronteira; b) para implementação de projetos agrícolas, que tenha a necessidade de autorização prévia e específica do governo; c) que o INCRA mantenha um cadastro geral dessas aquisições, entre outras. Ocorre, entretanto, que um parecer interno da Advocacia Geral da União – AGU declarou essa lei inconstitucional. Com isso, a administração pública ficou proibida de aplicar essa norma. Assim, atualmente, não há qualquer obstáculo ou requisito legal para que estrangeiros adquiram terras no Brasil.
Há notícias, entretanto, de uma proposta do Poder Executivo para a regulamentação dessa espécie de aquisição, que poderia incluir novos critérios de limitação, bem como a necessidade de procedimento administrativo prévio junto ao Incra, entre outros pontos. Existe também uma resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ deste ano que obriga todos os cartórios de registro de imóveis informar ao Incra sobre toda escritura que verse sobre propriedade de estrangeiro. A implementação do limite da propriedade privada da terra no Brasil também traria outras limitações aos estrangeiros, uma vez que a proposta de limite da campanha é de 35 módulos fiscais.

IHU On-Line – Quais são os principais usos da terra que os estrangeiros fazem no Brasil?

Fernando Gallardo Vieira Prioste – Os interesses de estrangeiros em adquirir grandes quantidades de terras variam muito. Entretanto, de forma geral, se pode afirmar que a aquisição de terras por estrangeiros, principalmente empresas transnacionais do setor do agronegócio, tem forte ligação com questões econômicas e geopolíticas.
O Brasil se apresenta, no momento, como um dos maiores produtores do mundo de grãos, carne, celulose e álcool, entre outros bens derivados da agricultura e pecuária. As projeções feitas para o setor no Brasil dão conta de que a consolidação da posição do país como potência mundial é uma tendência. A aquisição de terras é elemento essencial para a produção desses bens e, nesse sentido, a busca por terras também é crescente. No entanto, a manutenção da soberania alimentar depende, invariavelmente, do acesso a terras. O fato é que Estados nacionais também têm incentivado empresas a comprarem terras no Brasil (assim como na África e no resto da América Latina) para que possam viabilizar a produção de bens de seu interesse. Nesse sentido, grupos econômicos transnacionais têm pressionado o Brasil a vender terras públicas para particulares, aumentando a oferta de terras. Algumas das mais tangíveis consequências dessa influência é a restrição dos direitos humanos ambientais, a inviabilização das titulações de terras indígenas e quilombolas e a obstacularização da reforma agrária. A implementação do programa Terra Legal na Amazônia é a confirmação dessa situação, uma vez que este coloca no mercado de terras mais de 60 milhões de hectares.
Também não é demais recordar que para a reprodução do capital é necessário conjugar capital, trabalho e recursos naturais. Com esse paradigma, a propriedade da terra se coloca como elemento essencial e lastro de segurança para a manutenção do sistema de exploração do homem e da natureza, o que pode ser verificado especialmente em momentos de crise internacional.


Fonte: IHU On Line

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